Neonatologia | O primeiro canguru

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Íamos todos os dias ao hospital e como não podíamos pegar nas nossas filhas ficávamos de pé a olhar para elas e púnhamos as mãos pelas janelas das incubadoras para acaricia-las ou, caso estivessem a dormir, colocávamos apenas as mãos em contacto com a pele delas e ficávamos estáticos para não as acordarmos. Eu ficava com uma e o pai com outra e passado um tempo trocávamos. Passávamos o tempo todo assim. Mas o que ansiávamos mesmo era o dia de lhes podermos dar colo. Termos ali as nossas bebés e não lhes podermos dar colo era uma espécie de tortura. 

Em neonatologia não se usa o termo colo, chama-se fazer canguru. Este método consiste em colocar o bebé pele com pele com os pais. Os bebés estão na incubadora apenas com a fralda e são colocados encostados ao peito do pai ou da mãe por dentro da roupa sempre por um tempo superior a 1h. E traz imensos benefícios tanto para bebé como para a mãe. Segundo a Sociedade Portuguesa de Neonatologia no caso do bebé: melhora a regulação da temperatura corporal cutânea e central através do mecanismo de condução da temperatura do adulto; diminui a variação da frequência cardíaca e respiratória, melhora a oxigenação, reduz as bradicardias; promove a regulação do sono-vigília; melhora o crescimento e o desenvolvimento. No caso da mãe: promove a vinculação; aumenta a produção de leite; melhora o bem estar emocional e psicológico; incentiva a relação entre os pais/bebé.

Uma semana depois do parto quando chegamos à beira das incubadoras a enfermeira perguntou se queríamos fazer canguru com a Carlota. -E já podemos? Queríamos muito tê-la junto a nós mas a nossa prioridade era o bem estar dela e queríamos muito protegê-la. Se tivéssemos que esperar mais algum tempo para segurança dela esperaríamos. Mas a enfermeira disse que a Carlota já podia sair da incubadora e íamos finalmente poder fazer canguru com ela. Quase explodimos de alegria. Íamos finalmente poder sentir a nossa filha no nosso peito pela primeira vez. 

Tirar um bebé da incubadora é uma espécie de malabarismo. Eu sentei-me no cadeirão conforme indicação da enfermeira e depois foi assistir a toda uma logística de mudar a fralda, desligar sensores, desfazer o tricot todo dos fios que ela tinha conectados, vira daqui e vira dali. Quase dez minutos depois estava a enfermeira a trazê-la e a colocá-la no meu peito. Uma pluma, tão leve e frágil. O que senti nesse momento é algo indiscritível. Se numa situação normal, como tinha acontecido no dia do nascimento da Constança, é a melhor sensação do mundo, neste caso estando privados disso durante 8 dias é mesmo um momento muito marcante. 



A primeira coisa que fiz foi cheira-la. O cheirinho dos bebés é o melhor cheiro do mundo e era um desgosto que eu tinha, estar privada desse contacto e tinha receio que quando as pegasse pela primeira vez elas já não tivessem esse cheirinho tão característico. Então durante as 2h que se seguiram colava o nariz à cabecinha dela e cheirava-a intensamente, queria ficar com aquele cheirinho entranhado. Estivemos ali as duas, eu deitada confortavelmente no cadeirão com ela a dormir profundamente e a mima-la. Passado esse tempo era a vez do pai fazer canguru e de eu me colar à incubadora da Carminho. A partir desse dia pudemos fazê-lo diariamente. Dar colo a uma e não dar a outra dava-nos a sensação de injustiça. Uma estava a usufruir de um privilégio que a outra não podia. Mas havia de chegar o dia da Carminho. 

Só vinte dias depois do parto é que a Carminho pode sair da incubadora. Chegamos à neonatologia e eu fui marcar os biberões de leite que extraía em casa, quando cheguei à beira das incubadoras já estava o pai com a Carminho em canguru. A nossa pequenina podia finalmente ter colinho como a mana. Mas se ter a Carlota em canguru nos assustou no primeiro dia, com a Carminho ainda nos assustava mais. Ela era tão mas tão pequenina e tão frágil que dava a sensação que se ia partir. Eu nem sabia pegar numa bebé tão pequenina. Quando a enfermeira a pôs no meu peito mal conseguia senti-la de tão leve que era. Se eu achava a Carlota uma pluma a Carminho então nem se via dentro da minha blusa. 



Era o ponto alto dos nossos dias, poder sentir as nossas filhas no nosso peito, sentir o cheirinho delas, ouvir os sons delas tão particulares nos recém nascidos. E sentia-me triste por não poder viver isso tudo em casa 24h por dia. Então absorvíamos tudo daqueles momentos para levarmos na lembrança para casa para o tempo que passávamos longe delas. Eram as melhores 3/4h do nosso dia e nesse período de tempo era quando mais sentíamos que tudo ia correr bem, já não podia ser de outra forma. 


Ao contrário do que eu pensava inicialmente,  com o avançar dos dias a dificuldade de as deixar era cada vez maior e custava-nos cada vez mais. O vínculo afectivo aumentava a cada dia e o amor que sentíamos por elas também. E cada dia era mais penoso do que o anterior. Estávamos perfeitamente conscientes de que o internamento delas seria longo mas estava a ser cada vez mais difícil regressar a casa sem elas. Sentia mesmo que estava a perder os primeiros meses das minhas filhas, aquela fase de recém-nascidos onde parece que o corpinho delas é todo maleável e se funde no nosso, e isso é algo irrecuperável.

Neonatologia | O dia da minha alta

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Quando as coisas correm conforme o expectável o dia da alta é o mais ansiado pelos pais. Queremos muito levar as nossas bebés para casa e começar a viver aquela nova fase, com todas as coisas boas e menos boas, no nosso lar. Quando temos que voltar para casa de mãos a abanar as coisas são muito diferentes e gera em nós um sentimento agridoce.

Sabia que aquele dia ia chegar e que iria ter que voltar para casa sem elas. Se até ao parto me custava muito estar internada, depois do parto as coisas eram diferentes. Não que gostasse de estar internada, queria muito voltar para casa, mas enquanto estava ali podia descer à neonatologia sempre que quisesse, ficar ali o tempo que desejasse e acabava por me sentir perto das minhas filhas. Pelo menos mais perto do que a mais de 70km de casa. 

O hospital dispunha de uma casa onde as mães que vivessem a mais de 30km (espero não estar a cometer um erro em relação aos quilómetros) podiam ficar gratuitamente. Tinham que sair da casa até às 9h e só podiam voltar a entrar depois das 22h, hora a que tínhamos que sair da neonatologia. Era uma mais valia para quem vivesse longe mas os horários, na minha opinião, precisavam de ser revistos. São muitas horas sem ter onde descansar um pouco porque naquele intervalo de tempo não podiam ir para lá. Independentemente disso a minha decisão era ir para casa e regressar ao hospital todos os dias. Estávamos no mês de Agosto e a Constança estava de férias da creche. Queria estar com ela todos os dias e aproveitar com ela o tempo que não estivesse no hospital. Ela tinha apenas 16 meses e meio e precisava muito de mim e eu dela, era a minha força, e já não a via há cinco dias (o que para mim era imenso tempo). 

Então, três dias depois do parto, tive alta. Fiz as malas e desci para a neonatologia enquanto o meu marido levou todos os meus pertences para o carro. Ficamos o dia todo lá com as meninas, a saltitar de incubadora em incubadora. Quando se tem duas filhas na neonatologia sentimo-nos um pouco baratas tontas porque queremos dividir o tempo pelas duas quase de forma igual e então não paramos quietos, sempre a andar de uma incubadora para a outra e a olhar para dentro daquela caixinha como se estivéssemos a apreciar uma valiosa obra de arte. E estávamos! Cada movimento delas era a coisa mais bonita do mundo. 




Quando faltavam umas duas horas para irmos embora comecei a sentir um vazio gigantesco. A sensação de ir para casa e deixar as minhas filhas a mais de 70km de casa era horrível. Se acontecesse alguma coisa eu estava tão longe delas. Não podia chegar ao hospital rapidamente nem estava lá para as ver. Afirmo com toda a certeza que esse foi o segundo dia mais triste da minha vida, sendo que o primeiro foi o dia do parto. Por muito que eu possa escrever e descrever não há palavras que façam justiça ao que uma mãe sente nesse dia. Deixá-las ali “sozinhas” gera em nós um sentimento de tristeza profunda, com a sensação de que as estamos a abandonar, de que estamos tão longe e não estamos lá para as proteger (como se os profissionais que lá trabalham não estivessem mais capacitados do que nós para as protegerem!). 

Todos os pais que estavam lá há mais tempo sabiam exactamente quando uma mãe tinha alta, era o dia em que a mãe mais chorava junto às incubadoras. A própria enfermeira quando viu o meu estado disse-me: a mamã teve alta hoje não foi? 

Quando chega a hora de ir definitivamente embora aquela tristeza atinge proporções desmedidas. É só mais um toque, é só mais um olhar, é mexer no lençol para as aconchegar mais, é ver se estão confortáveis. No fundo é arranjar uma série de desculpas para ficar mais um pouco e não ter que lhes virar as costas. Até que tínhamos mesmo que ir embora. Percorri os corredores do hospital e o trajecto até ao carro a chorar compulsivamente. A dada altura dei por mim a pensar que era um exagero aquele sentimento porque as minhas filhas estavam em excelentes mãos e estavam a lutar mas como é que se controla isso? 

A viagem até casa demorou mais de uma hora e durante essa hora não trocamos uma palavra. Eu tinha um nó tão grande na garganta que só queria estar sossegada nos meus pensamentos. A cada quilómetro que nos afastávamos do hospital a minha dor aumentava e chorava ainda mais. Pensei muitas vezes, não só naquele dia como nos dias que se seguiram, que não ia aguentar aquela dor, que não sabia durante quanto tempo ia aguentar aquela situação. 

Quando cheguei a casa recebi a visita de uns tios e pedi ao meu marido para lhes pedir desculpa mas não queria estar nem ver ninguém. Só queria estar em sossego, nós os três. Dei por mim em casa vezes e vezes sem conta, durante as semanas que se seguiram ao parto, a acariciar instintivamente a minha barriga como se elas ainda estivessem ali. O meu cérebro ainda não tinha assimilado que o facto delas não estarem no meu colo não significava que ainda estivessem na minha barriga. E quando me apercebia do que estava a fazer chorava e chorava e dizia: já não estão aqui! Mas eu queria muito que ainda estivessem e custava-me horrores pensar que aquela gravidez tinha sido tão fugaz, que não tivesse tido tempo para as ter mais tempo só para mim, que me tinham sido “roubadas” tão cedo, que estavam a sofrer tanto e que estavam a passar por uma verdadeira prova de fogo. Pode parecer tudo muito exagerado mas era assim que os meus sentimentos estavam naquele momento. Continuo a dizer que ninguém está preparado para ver um filho  naquela situação e só quem passa por isso entende o que sente. Até porque aliado a isto tudo existia o sentimento de culpa e os “S’s” todos. Se tivesse repousado mais, se não tivesse ficado tão nervosa por ter sido internada, se não tivesse não desejado ter gémeos e mais alguns “S’s” que naquele momento me faziam sentido. 


Tornei-me monótona nas conversas com as poucas pessoas com quem me propunha a conversar e não esqueço a paciência que tiveram para ouvir os meus desabafos repetitivos e me tentarem levantar e dar força. É um clichê dizer que nos maus momentos é que se vêem quem são os verdadeiros amigos mas é verdade. Não que precisasse desta prova de fogo para saber quem tenho ao meu lado mas confirmei que são os melhores que poderia ter. Porque mesmo distantes fisicamente estiveram sempre comigo. 

Neonatologia | O impacto de as ver assim

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No dia a seguir ao parto a obstetra passou visita por volta das 9h30 e após ter verificado que estava tudo bem comigo, pelo menos a nível físico, deu-me autorização para ir à neonatologia ver as minhas filhas. O meu marido não estava no hospital, teve que ir tratar das burocracias todas após o nascimento, e fui acompanhada pela auxiliar que me levou numa cadeira de rodas apesar de me sentir perfeitamente confortável para ir a pé.

Quando cheguei à entrada da neonatologia vi uma banca com um lavatório do lado direito e do lado esquerdo tinha uma porta aberta para um corredor pequeno  onde estavam os cacifos, ao fundo do corredor tinha um WC para os pais. O corredor era tão estreito que não passavam duas pessoas em simultâneo. A auxiliar deixou-me à entrada a aguardar uma enfermeira e enquanto eu esperava estavam  duas mães a lavar as mãos no lavatório e conversavam. Inevitavelmente ouvi a conversa. Uma delas dizia à outra que na tarde do dia anterior estiveram muito tempo na sala dos pais, não puderam entrar na unidade de cuidados intensivos, porque entraram duas gêmeas “muito complicadas” e estiveram a estabiliza-las. As gêmeas eram minhas! Ao ouvir aquilo e com a fragilidade emocional em que estava começaram a cair-me as lágrimas. Passado pouco tempo olharam as duas para mim e perceberam que as gêmeas eram minhas. Sorriram-me com um olhar cúmplice como se me quisessem  dizer: muita força. Com o passar do tempo fui percebendo que os pais comunicavam muitas vezes assim entre si, quando as palavras nos faltavam limitávamo-nos a sorrir num acto de dar força. E funcionava tão bem!

A enfermeira chegou e foi-me explicando toda a dinâmica do serviço. Tínhamos um cacifo com o número das incubadoras das nossas filhas  onde podíamos deixar as nossas coisas todas. Nesses cacifos estavam diariamente duas batas, uma para o pai e uma para a mãe, e essas batas eram substituídas todos os dias à noite. Não podíamos entrar com pulseiras, anéis, relógios, colares e brincos porque eram veículos de transporte de bicharada. Tínhamos que lavar as mãos com toda a técnica descrita passo a passo no folheto afixado atrás do lavatório, para mim não era novidade porque o faço na minha actividade profissional mas para muitos pais (inclusive o meu marido) era uma novidade e perdiam ali bastante tempo nos primeiros dias a seguir todos os passos. Após a lavagem das mãos e estar devidamente equipada segui pelo corredor a pé com a enfermeira.

O corredor era comprido, muito largo e muito luminoso. Ao início do corredor ficava a sala dos pais, do lado direito. Uma sala com sofás e televisão onde podíamos sair para lanchar ou simplesmente para conversar um pouco ou até chorar como aconteceu muitas vezes. Também era para lá que íamos quando tínhamos que sair da unidade. Sempre que entravam bebés ou que tinham que fazer algum procedimento mais delicado pediam aos pais todos que saíssem. Acontecia muitas vezes e por longos períodos. A porta seguinte era a sala onde extraímos o leite. Tinha todo o material necessário e só podiam estar três mães de cada vez. Era uma sala pequena e tinha apenas três máquinas. Logo a seguir a essa sala estavam as unidades de cuidados intensivos do lado esquerdo e de intermédios do lado direito. Ambas todas vidradas tanto para o corredor como para o exterior. Eram muito luminosas e amplas. E lá estavam incubadoras e mais incubadoras. Entramos na unidade de cuidados intensivos e após passar a primeira porta tinha mais um lavatório onde teríamos que lavar e desinfectar novamente as mãos e só depois passar a segunda porta. 

Encaminhou-me até às incubadoras das minhas filhas que estavam lado a lado, a 10 e a 11, separadas apenas por um cadeirão para os pais. E se até ali havia momentos em que eu ainda pensava que não passava tudo de um pesadelo, ali confrontei-me com a realidade. E, como todas as mães quando vêem pela primeira vez os filhos numa incubadora, chorei. Queria controlar-me e não consegui parar de chorar um único segundo enquanto estive com elas. É muito difícil explicar o que se sente e o que se vê. No meu curso, no estágio de pediatria no Hospital de São Marcos, tive dois dias de observação na neonatologia e nada daquilo era novidade para mim. A diferença é que ali estavam mesmo as minhas filhas! As minhas filhas estavam completamente escondidas entre sensores, sondas, cateteres, ventilador. Eu via fios e mais fios. Os cateteres eram maiores do que os membros onde estavam. O saco em que estava envolvida a alimentação parentérica era maior do que elas.

E elas.. Uma coisa era ver em fotografias, outra totalmente diferente é ver ao vivo. O que mais me chocou é que conseguia contar-lhes todas as vértebras de tão magras que eram e de tão fina e translúcida que era a pele. A magreza delas era mesmo assustadora. Tinham uma pele muito escura, ainda coberta de lanugo (o corpo todo coberto com pelo preto), imenso cabelo preto, pés e mãos enormes em relação ao resto do corpo e uma cabeça completamente desproporcional de tão grande que era. Não eram efectivamente bebés bonitas mas eram as minhas bebés e para mim podiam ser as bebés mais lindas ou mais feias do mundo, isso era supérfluo e pouco me importava, o que eu queria mesmo é que elas não desistissem de viver. 




A enfermeira foi-me explicando tudo o que tinha sido feito desde que elas nasceram. Os exames que iam fazer e o estado delas. Habituámo-nos a ouvir diariamente que estão estáveis mas não estão fora de perigo, que cada segundo conta. Pude tocar-lhes e ficar ali a acariciá-las enquanto chorava, uma de cada vez e desinfectando as mãos sempre que ia tocar na outra, e foi a melhor sensação do mundo. A Carminho era pouco maior do que a minha mão, era do tamanho da mão do pai. Foi, durante todo o tempo que esteve lá, a bebé mais pequenina do serviço. A Carlota tinha mais 8cm.

Os pais do bebé que estava na incubadora ao lado da Carminho meteram conversa comigo para me consolarem e darem algum apoio e força. Já estavam lá há um mês. Confesso que naquele momento nada me consolava. Achava tão injusto bebés inocentes e tão pequenos estarem a sofrer daquela maneira que só sentia revolta.

Como a minha cesariana era recente a enfermeira disse-me para ir descansar mas eu não queria sair dali. Ao lado delas sentia que as protegia e que nada lhes podia acontecer mas a verdade é que ao fim da manhã comecei a sentir imenso sono (por causa do anti-histamínico) e tive mesmo que subir para o meu quarto.  

À tarde voltei para a neonatologia com o meu marido. Mas como ele não ia passar lá a noite porque tinha que cuidar da Constança eu à noite fiquei sozinha e estive na neonatologia até às 22h, hora em que tínhamos que sair. E quando saí, não sei explicar porquê, foi quando me deu o verdadeiro ataque de choro. Sentia que ia sufocar por deixá-las ali e ir sozinha para o meu quarto. Em vez de subir logo para o quarto fiquei à entrada do elevador a ver fotografias dos bebés que tinham nascido ali. Precisava de me agarrar a casos de esperança e precisava de ler relatos de casos idênticos ao nosso para acreditar que tudo ia correr bem. Fiquei ali sensivelmente 1h a ver e rever fotografia a fotografia, na sua maioria gémeos. E chorava como se não houvesse amanhã. Quando subi para o internamento continuei e não sabia como ia conseguir acalmar-me. Sentia um aperto enorme no peito. Uma dor que não conseguia explicar. E quando ouvia os bebés dos quartos vizinhos a chorar então essa dor triplicava. Ninguém está preparado para ver um filho a sofrer dessa forma. É de uma agressividade emocional que não dá para descrever. 

A enfermeira veio dar-me medicação e ficou ali comigo um bom tempo, só a ouvir desabafos sem sentido. Sabia que só estava a dizer frases soltas sem muito nexo mas naquele momento era o que estava a sentir. E mesmo depois da enfermeira ir embora ainda voltou ao quarto umas tantas vezes para ver se eu estava bem. Só quando o anti-histamínico surtiu efeito é que consegui finalmente adormecer.

Quando dois se tornam cinco

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Vou cortar um pouco o fio à meada mas, a propósito do dia do senhor cúpido, vou contar a história dos dois que se tornaram cinco.

Era uma vez dois indivíduos, com estilos de vidas totalmente diferentes, que já se conheciam de vista há algum tempo mas nunca tinham falado. Ele dizia que ela era a mulher com quem um dia ia casar e ela, embora não soubesse disso, achava que não era o homem com quem se casaria porque era um bocado estabanado (vá, ainda é!).

Um dia começaram a conversar e, contra tudo o que seria expectável, apaixonaram-se. Muitos achavam que não teria pernas para andar. Eles próprios não sabiam bem se teria. Mas o tempo foi passando com dias bons e dias menos bons, como em todas as relações, e quatro anos e meio depois casaram-se. 





Durante três anos e meio foram apenas dois e fartaram-se de viajar. Adoravam a liberdade que tinham, sendo apenas dois, e estavam envolvidos em vários projectos que também lhes ocupava muito tempo. Mas tomaram então a decisão de terem um rebento, mesmo sabendo que a vida iria mudar por completo. Como adoravam viajar decidiram que era apenas um e que seria então filho único. Assim podiam manter este estilo de vida, era mais fácil a nível de logística e financeiramente viajar apenas com uma cria.

O rebento nasceu e fê-los apaixonarem-se completamente pela faceta de pais! E olhem que este pequeno Ser não era dos fáceis. Durante o dia só queria andar no colo ou gritava até o conseguir e não dormia rigorosamente nada, à noite acordava de hora em hora para mamar. Mesmo assim estavam tão enamorados pela filha que decidiram que no ano seguinte iriam engravidar novamente para que quando a pequena tivesse aproximadamente dois anos nascesse o irmão (ou irmã). Quis a natureza que a gravidez se antecipasse e que em vez de um viessem dois! Com muitas provações, como já é sabido, foram superando os obstáculos. 

Hoje têm a certeza que, contra todas as expectativas, construíram um império de amor passando de dois a cinco. E que a vida foi muito generosa com eles dando-lhes muito mais do que algumas vez sonharam.  

Neonatologia | O cair na realidade

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Depois da cesariana a minha ansiedade era subir para o internamento. Precisava de obter urgentemente notícias das minhas filhas e no recobro estava isolada de tudo. Não conseguia falar com o meu marido porque ele não podia entrar e as enfermeiras também não conseguiam dar mais informações. Por isso aquelas 2h30/3h de recobro duraram uma eternidade. 

Quando cheguei ao internamento as primeiras perguntas que fiz à enfermeira foi se sabia se as minhas filhas estavam bem e se a equipa da neonatologia ligava para a obstetrícia a avisar caso acontecesse alguma coisa com alguma das meninas. A resposta à primeira pergunta foi negativa e à segunda foi positiva.  

Eu não tinha telemóvel e não tinha forma de avisar o meu marido que já estava no internamento e estava mesmo ansiosa pela chegada dele para me trazer notícias das meninas. Cerca de meia hora depois entrou, finalmente, no quarto e com ele ia um casal amigo. Tranquilizou-me dizendo que já as tinha visto e mostrou-me fotografias. Depois da cesariana seguiu atrás delas para a neonatologia e teve que esperar cerca de 2h até as estabilizarem para as poder ver. 




Nas fotografias a Carlota estava completamente embrulhada num lençol, em forma de ninho, e só lhe conseguia ver a cara com um ventilador a sair da boca. A Carminho estava totalmente destapada e confesso que a minha reação não foi tão tranquila quanto esperava. Também estava ventilada, com sondas, cateteres e imensos fios por todo o lado. A magreza dela era assustadora e não ver a mão também mexeu muito comigo. E foi precisamente nesse momento que tive um sentimento de revolta. Achei tão injusto, depois de tanta luta e de tantas provações que ela tinha passado dentro da barriga e da luta que ainda iria travar fora da barriga, ter mais esta superação (porque é uma superação diária). E chorei, chorei, chorei. O casal amigo tentava consolar-nos dizendo que ela se ia adaptar bem e que como já tinha nascido assim ia habituar-se a fazer tudo sem o apoio daquela mão e que um dia até podia pôr uma prótese. Eu sabia que tudo aquilo fazia sentido mas naquele momento eu só desejava que a minha filha recuperasse a sua mão (como se isso fosse possível!). Em momento algum a minha revolta foi por mim, a minha revolta foi sempre por pensar no futuro da minha filha e no que ela um dia pode sofrer, emocionalmente, por não ter aquela mão. Só pensava como é que em dezenas de ecografias nunca tinha sido visto. Ou será que foi visto e optaram por não me dizer? Não ia mudar nada o facto de eu saber mas teria outro tipo de preparação psicológica e não teria que lidar com tantas coisas ao mesmo tempo naquele momento. Mas ao mesmo tempo eu sabia que nunca me poderia revoltar contra o obstetra que me seguiu porque as minhas filhas deram-lhe tanto trabalho, ele teve sempre que se focar em tantas complicações e foi sempre tão eficaz a encaminhar-me para especialidades e tratamentos que se as minhas filhas conseguiram superar todas as complicações foi muito graças a ele. E como já referi, um antebraço tem um significado muito reduzido quando comparado à vida delas.

De seguida tive a visita dos meus pais que já sabiam pelo meu marido e mostraram estar perfeitamente à vontade com isso. Talvez para não me preocuparem mais. 

Sentia-me bem, sem dor, apesar de toda a gente me dizer que estava muito pálida. Tive anemia durante toda a gravidez por isso não seria de estranhar que agravasse depois da cesariana. A enfermeira veio novamente prestar-me cuidados de higiene e vestir-me o meu pijama. Senti sempre, desde o recobro à obstetrícia, uma preocupação com o meu bem estar. Pedi-lhe para me deixar ir à neonatologia ainda naquele dia. Só ia poder fazê-lo no dia seguinte mas eu queria muito ver as minhas filhas. Só as vi de rompante após o parto e no meio de tanto stress não fiquei com nenhuma imagem delas. A sensação de não as ter na barriga nem no berço vazio ao lado da minha cama era horrível. Dava por mim, inconscientemente, a fazer festinhas na barriga como se ainda estivessem ali. A enfermeira disse-me que me ia fazer o levante mais cedo e que ao final da tarde me levaria à neonatologia se eu me sentisse bem. E assim foi. Levantei-me, comi uma sopa e cerca de quinze minutos depois fui à neonatologia de cadeira de rodas acompanhada por uma auxiliar e pelo meu marido. A obstetrícia ficava no piso 4 e a neonatologia no piso 0. No elevador comecei a sentir-me nauseada mas pensei que quando saísse do elevador ia passar e não ia dar parte fraca, eu queria mesmo ver as minhas filhas. Quando passei a porta da neonatologia a auxiliar foi chamar uma enfermeira para que esta me explicasse todos os procedimentos a fazer antes de poder entrar na unidade de cuidados intensivos neonatais e enquanto ficamos lá à espera a auxiliar regressou à obstetrícia. 

Cerca de dois minutos depois veio a enfermeira e mal começou a falar eu só tive tempo de lhe pedir o caixote do lixo. E vomitei. A minha esperança de ver as minhas filhas tinha ido por água abaixo. Regressei em lágrimas à obstetrícia e teria que esperar até à manhã seguinte. 

A noite não foi fácil. Estavam a administrar-me morfina endovenosa para a dor e aquilo provocava-me um prurido insuportável no corpo todo. Até às 3h aguentei-me mas depois tive que tocar a pedir um anti-histamínico. Durante essas horas o que mais me custou foi ouvir o choro dos bebés dos outros quartos. Saber que estavam ali com as mães e que eu não tinha as minhas, que estavam “sozinhas” a quatro pisos de diferença a lutarem pela vida, era torturante. Cada vez que entrava uma enfermeira no quarto estremecia de medo que me trouxesse uma má notícia. Tinham tido a amabilidade de me colocar num quarto sozinha mas não podiam evitar de ouvir os outro bebés.

Mal o sol nasceu pedi ajuda ao meu marido para me levantar e fui tomar banho. Queria estar pronta bem cedo para ir à neonatologia. Mas quando a enfermeira veio disse-me que só poderia ir depois da visita médica. Só pedi muito que viesse cedo! Não aguentava esperar muito mais.

Gravidez | Porquê que a Carminho não tem o antebraço esquerdo?

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Uma das primeiras perguntas que a Constança fez (com apenas 19 meses) depois da Carminho ter alta da neonatologia foi: “a mão?”.  Estava a namorar a irmã e a examiná-la ao pormenor quando percebeu que havia ali alguma diferença. Não se consegue explicar a uma criança de 19 meses o que vou explicar a seguir e por isso limitei-me a subir a manga do body e a dizer-lhe: “A maninha não tem esta mão meu amor, só tem a outra!”. Para ela aquela resposta foi esclarecedora, embora sempre que se lembrava voltava a perguntar pela mão e de seguida dizia: “não tem! Só tem a outra!”. Em pouco tempo habituou-se a ver a irmã assim e hoje já não pergunta. Só ajuda a irmã quando a vê em apuros por falta do apoio daquela mão.

Depois do parto fomos contando aos familiares e amigos que nos ligavam a felicitar pelo nascimento delas e a saber notícias das meninas e rapidamente se espalhou a novidade. Também não pretendíamos guardar segredo. A nossa filha é assim e nada vai mudar isso por isso só tínhamos que aceitar e encarar. Independentemente disso o nosso foco continuava a ser a sobrevivência dela.

Rapidamente vários entendidos na matéria inventaram as mais diversas causas para isso ter acontecido. O cordão umbilical garrotou-lhe o braço e teve que ser amputado. Fracturou durante o parto (e com tamanha brutalidade que a fractura foi irremediável!). Nasceu siamesa pelo braço com a irmã e tiveram que as separar e a Carlota ficou com o braço e a Carminho sem ele. Foi pela posição na barriga, estava em cima do braço e este acabou por partir. Não se formou. Depois de nascer tentaram pôr um cateter naquele braço e agrediram de tal forma que acabou por ter que ser amputado. Foi queimado/cortado com o laser em Londres. E juro que ainda ouvimos mais algumas versões que agora não me recordo. 

Muito poucas foram as pessoas que tiveram coragem de nos perguntar o verdadeiro motivo e eu compreendo perfeitamente. Numa situação idêntica também não sei se teria coragem de abordar o assunto por medo de ferir susceptibilidades. 

Mas afinal porquê que a Carminho não tem antebraço esquerdo?



No momento do parto, quando me disseram que a Carminho tinha ficado sem a mão, fiquei convencida que era “apenas” a mão. O corpo de um prematuro é muito desproporcional, com mãos, pés e cabeça enormes em relação ao resto do corpo que era tão minúsculo. Por isso era difícil perceber que não era apenas a mão. Só umas três semanas depois com o crescimento dela é que comecei a perceber que não seria só a mão e questionei a equipa médica. Era efectivamente todo o antebraço. 

A causa chama-se: brida amniótica. De uma forma muito básica uma brida amniótica é uma banda fibrosa, tipo um fio, que fica pendurado desde a placenta a flutuar no líquido amniótico e se for suficientemente comprido pode garrotar (ou não) uma parte do corpo. Pode ainda causar malformações por exemplo na cara. Podemos ter uma ou várias bridas amnióticas. Esta brida geralmente é causado por um traumatismo (um embate com a barriga). No caso da Carminho suspeita-se que tenha sido causada pelo tratamento a laser efectuado em Londres e está ainda em estudo a incidência de bridas neste tipo de tratamentos. Foi um tratamento agressivo e pode ter originado uma ruptura na bolsa amniótica provocando a brida. Geralmente esta é detectada ao longo da gravidez, nas ecografias, mas no meu caso só soube à nascença. 



Nasceu com a brida amniótica a garrotar o membro superior esquerdo e como tal este esteve privado de circulação sanguínea. Desta forma, à nascença, necrosou acabando por cair três semanas depois. Durante essas três semanas ficou ali algo idêntico a uma folha seca, muito encolhida e frágil.

Como eu costumo dizer, aquilo que lhe salvou a vida tirou-lhe um antebraço. E a vida dela é muito mais importante do que um antebraço!

Gravidez | O parto

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Qualquer mulher anseia o dia do parto. Umas por medo da dor mas todas por conhecer e ter nos braços o nosso maior amor. Assim foi no parto da Constança, o dia mais feliz da minha vida! Mas quando tudo sai do padrão normal e há riscos envolvidos o caso muda de figura.

Antes de entrar para o bloco fui até à sala de recobro porque estavam a acabar de limpar o bloco e não podia entrar antes de terminarem. Aí entrei literalmente numa crise de ansiedade. Tremia como se estivesse na Sibéria e transpirava como se estivesse no México. Quando tentava falar a minha voz saía trémula e com falhas. Foram buscar-me um cobertor porque achavam que eu tinha frio mas expliquei que não era frio, que estava em pânico e a enfermeira disse-me: “é mau quando sabemos de mais não é?”. 

O bloco estava limpo e eu ia entrar. Era só sair daquela porta e entrar na porta mesmo em frente. Entrei no bloco, enorme e vazio de objectos, e mesmo no meio estava a mesa para onde eu ia ser transferida. Encostadas à parede estavam duas encubadoras afastadas uma da outra. Lá dentro estavam imensos (imensos mesmo) profissionais. Por momentos lembrei-me de Londres quando estavam tantos profissionais a assistir ao meu tratamento. Transferiram-me para a mesa de operações e uma obstetra, à qual só conseguia ver uns lindos olhos verdes por cima da máscara, disse-me para não me assustar com tantas pessoas na sala mas estavam duas equipas de médicos, obstetras e pediatras, médicos suplentes (caso fossem necessários), enfermeiros do bloco, enfermeiros da neonatologia e anestesistas. Só pediatras eram quatro, dois para cada bebé, e ainda dois suplentes. Obstetras eram outros quatro. Mesmo com tantas pessoas no bloco não havia barulho. Jamais esquecerei toda a delicadeza de toda a equipa. Começaram a monitorizar-me e administraram a anestesia. A minha ansiedade estava no auge, de tal forma que o oximetro saía projectado do meu dedo com tanto suor. Lembro-me de dizer a mim própria: “Que vergonha, tens que te acalmar! Pareces uma criança descontrolada.. Vou pensar no mar e no seu som”. E estava a esforçar-me mas não estava a resultar. Sentia o meu corpo a tremer e foram buscar mais um cobertor, apesar de eu dizer que não era frio. Os dois anestesistas estavam atrás da minha cabeça, de mãos dadas a mim. Ao meu lado estava uma pediatra “suplente” que depois me foi relatando o parto todo. 

Perguntaram-me o nome das meninas para escreverem nas pulseiras e no quadro. Quando lhes disse a reação na sala foi geral: que nomes bonitos! Na hora até pensei que a reação era para eu tentar acalmar-me mas no final até foram dar os parabéns ao pai por termos escolhido uns nomes tão bonitos. Perguntaram-me se os nomes eram ao acaso ou se tínhamos definido para quem era cada nome. Expliquei que a pequenina era a Carminho e a maior a Carlota. 

A obstetra disse que me iam algaliar naquele momento. A seguir deitaram água fria na minha perna e na minha barriga e perguntou se estava a sentir. Sentia tudo. Aumentaram a anestesia e repetiram o teste. Continuava a sentir. O anestesista perguntou à sua colega se não era melhor eu ser sedada mas a anestesista respondeu que no meu caso não podiam. Só dias depois é que o meu cérebro atingiu o porquê! O sedativo ia ter efeitos nas bebés e poderia ser muito prejudicial. Repetiram o teste mais duas vezes e à terceira deixei de sentir. “Vamos então começar” disse a obstetra. 

Oh meu Deus! É agora. Enquanto sentia o bisturi a deslizar no meu abdómen (sem ter dor) só pensava “elas vão viver, elas vão viver, elas vão viver”. Mas por dentro estava morta de medo de ouvir o pior. Não havia nada que me estivesse a assustar mais. Tinha muito medo que uma delas entrasse em paragem cardíorrespiratória e não sobrevivesse. Eu não estava mesmo preparada para perder uma delas e muito menos as duas. 

A pediatra e a anestesista iam relatando todos os passos e eu ia ouvindo. A seguir comecei a sentir algo idêntico a esticar a pele da barriga para abrirem o orifício para as tirar e de repente sinto uma pressão enorme como se as tivessem a arrancar de dentro de mim e “A Carlota está a nascer”, “Ai que bonito, a Carminho saiu com ela, ao mesmo tempo!”. Às 12h45 e às 12h46 nasceram. E, tal como quando a Constança nasceu, começo a chorar de emoção. E a minha ansiedade passou a ser ouvi-las chorar, era sinal de vida. Não sei precisar quanto tempo demorou até isso acontecer porque naquele momento pareceu-me uma eternidade mas penso que tenham sido alguns segundo até me dizerem que era a Carlota a chorar, um som muito baixinho e fraco mas chorou. Cerca de um minuto depois foi a vez da Carminho, num som quase não audível. 

A pediatra foi-me dizendo que estavam a monitorizar as duas e os respectivos pesos, medidas e índices de APGAR enquanto as obstetras terminavam de cuidar de mim. E eis que a mesma pediatra que esteve sempre ao meu lado a contar-me tudo se ausentou um pouco e quando regressou trouxe-me uma notícia totalmente inesperada. De uma forma muito meiga e delicada, tal como aconteceu durante todo o parto, diz-me: “Surgiu um problema com a Carminho, ela não tem mão esquerda”. Percebi no rosto dela uma preocupação e apreensão com a minha reação mas a minha resposta saiu de rompante e lembro-me como se fosse hoje: “Doutora a minha preocupação é ter a minha filha viva e bem a nível cognitivo, uma mão vale o que vale”. Naquele momento aquela notícia não me abalou nem um pouco. A minha preocupação era (mesmo) ela estar viva e não ter sequelas, a mão era algo supérfluo quando comparado com a vida dela e com uma paralisia cerebral. O cenário era tão negro que aquela informação (naquele momento) não teve qualquer importância para mim. De seguida começaram a dizer-me aquilo que depois nos fomos habituando a ouvir: as próteses agora estão muito evoluídas, a medicina está muito evoluída, ... Naquele momento não estava mesmo focada nisso e não queria pensar nesse assunto. Só pedi para verem como davam a notícia ao meu marido porque ele não reage bem emocionalmente e ainda podia desmaiar. (No próximo post explico porquê que a Carminho nasceu ficou sem a mão). 

Pouco tempo depois vieram mostrar-me a Carlota. Vi-a durante cerca de cinco segundos. Estava sem roupa e era tão pequenina e magra. Não fixei nenhuma característica do seu rosto mas lembro-me do quanto me impressionou ser tão pequena. Como não me tinham dito qual delas era pensei que fosse a Carminho, nem reparei na mão, porque não imaginava que ainda pudesse haver uma mais pequena. Quando a vi comentei: “Oh meu Deus! É tão pequenina.” E a pediatra disse-me que aquela não era a Carminho. “Se esta não é a Carminho como é que a Carminho é?”.

Cerca de cinco minutos depois trouxeram a Carminho. Vinha toda embrulhada num lençol e apenas consegui ver um rosto muito pequenino e dar-lhe um beijinho. Levaram-na rapidamente. Até preferi não a ter visto na íntegra porque teria mais algum tempo para me preparar para o que ia ver. 

Eu saí para o recobro e deixaram o meu marido entrar dois segundos para me dar um beijo. Foi tão rápido que não tive tempo de lhe contar da Carminho. Só lhe disse: estão vivas! Fiquei no recobro cerca de 2h30. Tentei dormir mas não consegui. Estar ali sem notícias das minhas filhas matava-me. Não as tinha ao meu lado nem na barriga, era uma sensação muito estranha. Vi o bebé da cesariana seguinte a ser vestido, vi a mãe a ser trazida para o meu lado. Deram-me banho e comentei com a enfermeira que era muito estranho ter entrado no bloco com duas bebés na barriga e sair sem nada, nem barriga nem bebés. Ao que ela me disse de forma um pouco ríspida “desculpe mas você também não tinha grande barriga”. Vieram as enfermeiras da obstetrícia buscar-me e subi para o internamento. E agora começava um novo ciclo. A luta das nossas filhas era fora da barriga!


E assim o dia 1 de Agosto de 2017 passou a ser o dia mais triste, difícil e apreensivo da minha vida.

Gravidez | O dia do parto

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Era dia 1 de Agosto. Às 6h30 levantei-me para ir ao WC. Eu era daquelas grávidas que aguentava horas e horas sem ir ao WC e de noite raramente ia. Percebi que a perda de sangue tinha aumentado significativamente mas como já estava a perder sangue há dois dias e nas avaliações médicas nunca havia alterações decidi esperar pela manhã para alertar a enfermeira. Voltei a deitar-me e dormi mais um pouco, 1h depois acordei e fui tomar banho. Durante e no final do banho parecia uma torneira mal fechada, sempre a sair sangue. Acabei o banho, vesti-me e como a minha companheira de quarto ainda não tinha dado banho aqui a espertalhona decidiu andar de gatas a limpar o chão com o papel higiénico, não ia deixar a casa de banho naquele estado! Na hora foi o que me ocorreu,  nem me lembrei que podia ter chamado as senhoras da limpeza. (Nem queiram imaginar o raspanete que ouvi do meu marido quando lhe contei.)



Regressei para a cama e toquei para chamar a enfermeira. Quando esta chegou pediu-me que aguardasse um pouco e iria ser avaliada novamente pelo médico. Como não me tinha sido dada indicação para não tomar o pequeno-almoço e estava faminta comi um pão com manteiga e bebi um chá. Cerca de dez minutos depois fui chamada ao gabinete médico e lá fui eu na cadeira de rodas (era assim que me levavam ao gabinete médico). Ainda antes de me deitar a médica mal viu a perda de sangue disse: Ui! Isto é ruptura da bolsa. Por instinto comecei imediatamente a chorar. Não havia mais nada a fazer, elas iam nascer naquele dia com apenas 29 semanas. Aquilo saía completamente de tudo o que tinha idealizado e daquilo em que acreditava. Eu acreditava que ia chegar às 35 semanas e descambou tudo. O medo apoderou-se de mim.

Deitei-me para avaliação e mal fez o toque deu indicação à enfermeira para que me encaminhasse ao núcleo de partos. Parecia uma Maria Madalena banhada em lágrimas. Tinha um milhão de coisas para fazer antes de descer para o núcleo de partos mas não conseguia raciocinar. Só pensava e repensava no estado das minhas filhas, a nascerem com 29 semanas. Apenas conhecia dois casos de crianças que nasceram abaixo das 31 semanas e achava que era algo muito raro (até entrar na neonatologia!). A enfermeira perguntou-me se não ia ligar ao pai. Claro! Como é que ainda não me tinha ocorrido isso?! Liguei a chorar de tal forma que ele não estava a perceber rigorosamente nada, disse-lhe para voar para o hospital, não queria que as minhas filhas nascessem sem que ele estivesse lá. Estava em casa (a cerca de 75Km) e àquela hora o trânsito no Porto era caótico, como queriam apressar as coisas para elas nascerem rapidamente era provável que ele não chegasse a tempo. Depois a enfermeira e a auxiliar arrumaram as minhas coisas todas dentro da mala e descemos para o núcleo de partos. 

Mal entrei no núcleo vi uma mãe numa cadeira de rodas com a bata verde vestida, o cabelo preso e um olhar triste, tal e qual eu. Pensei, caramba que aspecto o nosso! Encaminharam-me novamente para uma cama,onde já tinha estado na primeira noite, e como tinha tomado o pequeno-almoço deram-me medicação endovenosa para acelerar a digestão e esvaziar o estômago. Sempre tive alguns problemas gástricos e já fazia essa medicação em casa em SOS via oral e dava-me um sono tremendo. Cinco minutos depois de me administrarem a medicação estava cheia de sono e só queria dormir. Pensei que se me levassem para parto normal não ia conseguir colaborar em nada porque estava completamente KO. 

Entretanto chegaram os anestesistas, de uma delicadeza, meiguice e simpatia impressionantes, e explicaram o procedimento para colocação do cateter. Essa parte assustava-me um pouco. No parto da Constança foi o que mais me custou. Não foi uma dor medonha mas foi incomodativa. Senti uma enorme pressão e uma espécie de choque pela coluna. E temia um pouco esse momento. Perguntei se ia ser parto normal porque se fosse estava a ponderar não levar epidural. Estava com contrações mas eu suporto bem as contrações e como as bebés eram pequeninas deveriam sair facilmente e a dor seria suportável. Mas ia ser cesariana porque a Carminho era muito pequena e como era a segunda a nascer ia exigir-lhe muito esforço por isso não podiam arriscar mais. Perceberam o meu receio em relação à anestesia e disseram-me para não me preocupar que não iria sentir dor, apensas a tal pressão porque essa não conseguiam evitar. Foram buscar o material, posicionei-me e em pouco tempo o cateter foi colocado. Realmente não senti dor absolutamente nenhuma!

Nos momentos seguintes veio a obstetra falar comigo, tentar controlar a minha ansiedade e explicar o porquê da cesariana em vez de parto normal como eu gostaria. De seguida veio o pediatra. Disse-me que ia ser um dos pediatras que iria estar no parto e como eu já devia saber a situação das minhas filhas era muito delicada. Especialmente a da Carminho mas a da Carlota também. Usando as palavras dele assim por alto.. Como a Carlota nunca passou por dificuldades ao longo de toda a gravidez e sempre esteve bem não estava preparada para nascer tão cedo e ter que lutar. Enquanto a Carminho esteve a lutar desde o início da gravidez e por isso esta situação não ia ser novidade para ela. Embora a situação dela fosse muito crítica dado o extremo baixo peso provocado pela restrição de crescimento intra-uterino. Ele falava e eu chorava. 

Durante aquele tempo em que estive ali sem o meu marido, e foi cerca de 1h30 (que mais pareceu um dia inteiro), estive quase sempre acompanhada. Raramente me deixavam sozinha tal era o meu estado de ansiedade. 

O meu marido chegou e eu continuava num pranto. O momento do parto estava a chegar e à medida que o tempo passava a minha ansiedade aumentava. Era um misto de sentimentos. Tinha medo de ouvir o que não queria no momento do parto. Tinha um medo avassalador que as minhas filhas não sobrevivessem (era o  que mais me assustava e que não saía da minha cabeça). Tinha medo de se confirmar a dita sequela na Carminho. Tinha medo do impacto de ver uma bebé tão prematura e pequena (a Carminho, pelas ecografias, pesava 510gr e a Carlota 980gr), nunca tinha visto um bebé assim e estava assustadíssima com aquilo que ia ver. E tinha medo da cesariana. Desde a intervenção em Londres morria de medo de qualquer acto médico e de sofrer novamente e por isso estava mesmo apreensiva. Não consigo descrever o turbilhão de pensamentos e sentimentos que estava a viver. Sei que queria acalmar-me e não pensar em nada disto mas nem por cinco segundos conseguia abstrair-me disto. A enfermeira foi conversando comigo ao longo daquele tempo que antecedeu a cesariana de forma a acalmar-me mas eu não estava a conseguir gerir aquela ansiedade. 

E chegou o momento! Vamos para o bloco. Lá ia eu na cama a percorrer o corredor a chorar (não fiz mais nada nesse dia a não ser chorar). Até que mesmo à entrada do bloco nos dizem que estava a chegar uma cesariana de urgência e eu só iria a seguir. Voltamos para trás. Vinte minutos depois vieram buscar-me, era o momento! Aquele que, noutras circunstâncias, deveria ser um dos momentos mais felizes da minha vida, era seguramente o mais triste. Sentia uma tristeza tão profunda e um medo tão grande! O meu marido não ia assistir à cesariana porque não se sente confortável em ambiente hospitalar e despedi-me dele à porta do bloco. A partir dali era eu e elas para tudo o que pudesse acontecer.