Neonatologia | O impacto de as ver assim

No dia a seguir ao parto a obstetra passou visita por volta das 9h30 e após ter verificado que estava tudo bem comigo, pelo menos a nível físico, deu-me autorização para ir à neonatologia ver as minhas filhas. O meu marido não estava no hospital, teve que ir tratar das burocracias todas após o nascimento, e fui acompanhada pela auxiliar que me levou numa cadeira de rodas apesar de me sentir perfeitamente confortável para ir a pé.

Quando cheguei à entrada da neonatologia vi uma banca com um lavatório do lado direito e do lado esquerdo tinha uma porta aberta para um corredor pequeno  onde estavam os cacifos, ao fundo do corredor tinha um WC para os pais. O corredor era tão estreito que não passavam duas pessoas em simultâneo. A auxiliar deixou-me à entrada a aguardar uma enfermeira e enquanto eu esperava estavam  duas mães a lavar as mãos no lavatório e conversavam. Inevitavelmente ouvi a conversa. Uma delas dizia à outra que na tarde do dia anterior estiveram muito tempo na sala dos pais, não puderam entrar na unidade de cuidados intensivos, porque entraram duas gêmeas “muito complicadas” e estiveram a estabiliza-las. As gêmeas eram minhas! Ao ouvir aquilo e com a fragilidade emocional em que estava começaram a cair-me as lágrimas. Passado pouco tempo olharam as duas para mim e perceberam que as gêmeas eram minhas. Sorriram-me com um olhar cúmplice como se me quisessem  dizer: muita força. Com o passar do tempo fui percebendo que os pais comunicavam muitas vezes assim entre si, quando as palavras nos faltavam limitávamo-nos a sorrir num acto de dar força. E funcionava tão bem!

A enfermeira chegou e foi-me explicando toda a dinâmica do serviço. Tínhamos um cacifo com o número das incubadoras das nossas filhas  onde podíamos deixar as nossas coisas todas. Nesses cacifos estavam diariamente duas batas, uma para o pai e uma para a mãe, e essas batas eram substituídas todos os dias à noite. Não podíamos entrar com pulseiras, anéis, relógios, colares e brincos porque eram veículos de transporte de bicharada. Tínhamos que lavar as mãos com toda a técnica descrita passo a passo no folheto afixado atrás do lavatório, para mim não era novidade porque o faço na minha actividade profissional mas para muitos pais (inclusive o meu marido) era uma novidade e perdiam ali bastante tempo nos primeiros dias a seguir todos os passos. Após a lavagem das mãos e estar devidamente equipada segui pelo corredor a pé com a enfermeira.

O corredor era comprido, muito largo e muito luminoso. Ao início do corredor ficava a sala dos pais, do lado direito. Uma sala com sofás e televisão onde podíamos sair para lanchar ou simplesmente para conversar um pouco ou até chorar como aconteceu muitas vezes. Também era para lá que íamos quando tínhamos que sair da unidade. Sempre que entravam bebés ou que tinham que fazer algum procedimento mais delicado pediam aos pais todos que saíssem. Acontecia muitas vezes e por longos períodos. A porta seguinte era a sala onde extraímos o leite. Tinha todo o material necessário e só podiam estar três mães de cada vez. Era uma sala pequena e tinha apenas três máquinas. Logo a seguir a essa sala estavam as unidades de cuidados intensivos do lado esquerdo e de intermédios do lado direito. Ambas todas vidradas tanto para o corredor como para o exterior. Eram muito luminosas e amplas. E lá estavam incubadoras e mais incubadoras. Entramos na unidade de cuidados intensivos e após passar a primeira porta tinha mais um lavatório onde teríamos que lavar e desinfectar novamente as mãos e só depois passar a segunda porta. 

Encaminhou-me até às incubadoras das minhas filhas que estavam lado a lado, a 10 e a 11, separadas apenas por um cadeirão para os pais. E se até ali havia momentos em que eu ainda pensava que não passava tudo de um pesadelo, ali confrontei-me com a realidade. E, como todas as mães quando vêem pela primeira vez os filhos numa incubadora, chorei. Queria controlar-me e não consegui parar de chorar um único segundo enquanto estive com elas. É muito difícil explicar o que se sente e o que se vê. No meu curso, no estágio de pediatria no Hospital de São Marcos, tive dois dias de observação na neonatologia e nada daquilo era novidade para mim. A diferença é que ali estavam mesmo as minhas filhas! As minhas filhas estavam completamente escondidas entre sensores, sondas, cateteres, ventilador. Eu via fios e mais fios. Os cateteres eram maiores do que os membros onde estavam. O saco em que estava envolvida a alimentação parentérica era maior do que elas.

E elas.. Uma coisa era ver em fotografias, outra totalmente diferente é ver ao vivo. O que mais me chocou é que conseguia contar-lhes todas as vértebras de tão magras que eram e de tão fina e translúcida que era a pele. A magreza delas era mesmo assustadora. Tinham uma pele muito escura, ainda coberta de lanugo (o corpo todo coberto com pelo preto), imenso cabelo preto, pés e mãos enormes em relação ao resto do corpo e uma cabeça completamente desproporcional de tão grande que era. Não eram efectivamente bebés bonitas mas eram as minhas bebés e para mim podiam ser as bebés mais lindas ou mais feias do mundo, isso era supérfluo e pouco me importava, o que eu queria mesmo é que elas não desistissem de viver. 




A enfermeira foi-me explicando tudo o que tinha sido feito desde que elas nasceram. Os exames que iam fazer e o estado delas. Habituámo-nos a ouvir diariamente que estão estáveis mas não estão fora de perigo, que cada segundo conta. Pude tocar-lhes e ficar ali a acariciá-las enquanto chorava, uma de cada vez e desinfectando as mãos sempre que ia tocar na outra, e foi a melhor sensação do mundo. A Carminho era pouco maior do que a minha mão, era do tamanho da mão do pai. Foi, durante todo o tempo que esteve lá, a bebé mais pequenina do serviço. A Carlota tinha mais 8cm.

Os pais do bebé que estava na incubadora ao lado da Carminho meteram conversa comigo para me consolarem e darem algum apoio e força. Já estavam lá há um mês. Confesso que naquele momento nada me consolava. Achava tão injusto bebés inocentes e tão pequenos estarem a sofrer daquela maneira que só sentia revolta.

Como a minha cesariana era recente a enfermeira disse-me para ir descansar mas eu não queria sair dali. Ao lado delas sentia que as protegia e que nada lhes podia acontecer mas a verdade é que ao fim da manhã comecei a sentir imenso sono (por causa do anti-histamínico) e tive mesmo que subir para o meu quarto.  

À tarde voltei para a neonatologia com o meu marido. Mas como ele não ia passar lá a noite porque tinha que cuidar da Constança eu à noite fiquei sozinha e estive na neonatologia até às 22h, hora em que tínhamos que sair. E quando saí, não sei explicar porquê, foi quando me deu o verdadeiro ataque de choro. Sentia que ia sufocar por deixá-las ali e ir sozinha para o meu quarto. Em vez de subir logo para o quarto fiquei à entrada do elevador a ver fotografias dos bebés que tinham nascido ali. Precisava de me agarrar a casos de esperança e precisava de ler relatos de casos idênticos ao nosso para acreditar que tudo ia correr bem. Fiquei ali sensivelmente 1h a ver e rever fotografia a fotografia, na sua maioria gémeos. E chorava como se não houvesse amanhã. Quando subi para o internamento continuei e não sabia como ia conseguir acalmar-me. Sentia um aperto enorme no peito. Uma dor que não conseguia explicar. E quando ouvia os bebés dos quartos vizinhos a chorar então essa dor triplicava. Ninguém está preparado para ver um filho a sofrer dessa forma. É de uma agressividade emocional que não dá para descrever. 

A enfermeira veio dar-me medicação e ficou ali comigo um bom tempo, só a ouvir desabafos sem sentido. Sabia que só estava a dizer frases soltas sem muito nexo mas naquele momento era o que estava a sentir. E mesmo depois da enfermeira ir embora ainda voltou ao quarto umas tantas vezes para ver se eu estava bem. Só quando o anti-histamínico surtiu efeito é que consegui finalmente adormecer.

2 comentários :

  1. Meu Deus! Que nó na garganta! Que autêntico milagre! O que vos desejo é muita sorte e felicidade, é o mínimo que se pode desejar a quem já passou por tanto! Beijinho grande

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  2. Mamã chorei de emoção, a minha bebé nasceu em Maio tb de 29 semanas, e pela descrição foi na mesma maternidade. Só quem passa dá valor. Hoje estou melhor ao ver q a minha filha está bem, mas na altura senti mt medo, mta revolta, o pq a mim. Mas temos de aceitar e sorrir

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