Quase dois meses depois a alta da Carminho da pediatria

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Vivíamos num hospital há mais de um mês e meio e a minha força estava a desvanecer. O quadro da Carminho não tinha qualquer alteração que me fizesse ver uma luz ao fundo do túnel e a distância das minhas outras filhas já estava a tornar-se insustentável. Só via o meu marido durante cinco minutos à sexta-feira à noite e ao sábado à noite quando trocávamos o turno no hospital.
Sentia-me a chegar ao limite e pedi para falar com a pneumologista. Tinha pensado numa eventual solução e tinha uma proposta para apresentar que talvez fizesse sentido e pudesse ser aceite. 

Entraram no quarto três médicas que já conhecia perfeitamente bem: a pneumologista, a directora de serviço e uma pediatra. Disse-lhes com sinceridade que estava a começar a entrar em desespero porque não via qualquer melhoria. Perguntei-lhes qual era o prognóstico, o porquê da Carminho não estar a passar daquele patamar, o que pretendiam alterar para ela melhorar e podermos ir para casa. E no final apresentei a minha proposta. 

A Carminho alimentava-se quase na totalidade com sonda nasogastrica que arrancava várias vezes ao dia e tinha necessidade de ser entubada novamente. Antes de cada mamada tinha que ser aspirada. Fazia aerossóis de 8/8h. Tinha que estar monitorizada para avaliar as saturações de oxigénio e a frequência cardíaca. Precisava de oxigénio 24h. Então porque não darem-lhe alta, fornecerem-me todo o material necessário e eu prestava esses cuidados em casa? Podia perfeitamente fazê-lo e caso houvesse um agravamento recorria novamente ao hospital. Não podia ter feito esta proposta antes porque fazia medicação endovenosa mas naquele momento tentei a minha sorte sem grandes expectativas de que o fossem permitir. Para minha felicidade a resposta foi positiva. Não poderia ser naquele dia porque havia burocracias a tratar mas iriam começar a tratar de todo o processo.

Nesse mesmo dia iniciou uma oximetria para avaliar a saturação de oxigénio no sangue durante 24h. No dia seguinte saiu o resultado e as médicas vieram conversar comigo. Mesmo a fazer oxigénio a saturação caía durante o sono e a solução encontrada era a Carminho começar a usar um ventilador durante o sono nocturno e as sestas. Perguntaram-me o que achava. Se essa era a solução e se era para o seu benefício então que viesse o ventilador (mal sabia o que iríamos passar para ela se adaptar ao ventilador). No caso da Carminho os benefícios eram imensos a nível respiratório, cardíaco, ao não ter tanto trabalho para respirar iria ajudá-la a engordar e a não estar tão cansada para poder comer e daí poder retirar a sonda. 

No dia seguinte de manhã chegou o ventilador e com ele a notícia da alta da Carminho. Liguei imediatamente ao pai para nos ir buscar e depois estivemos a adaptar-lhe o ventilador. Ela era tão pequenina que não havia uma máscara com um tamanho adequado para a cara dela. A mais pequena que existia teve que ser toda costurada pela minha mãe para ficar perfeitamente adaptada ao rosto dela e assim não haver fugas. Ao contrário do que imaginei até correu muito bem. A médica colocou-lhe o ventilador e ela adormeceu no minuto seguinte. Explicaram-me que iria ser assim, que ela ficava tão relaxa que acabava por adormecer sempre.

Depois do almoço chegou o tão esperado momento. Com a casa às costas de quem ali esteve quase dois meses. Carta de alta na mão, malas, saco do ventilador, saco com sondas nasogastricas, ninho da Carminho que usamos para não se perder na cama, babycoque. Despedimo-nos de todos aqueles que durante tanto tempo foram incansáveis connosco e saímos numa felicidade desmedida. 

Ainda estávamos a caminho de casa e já me estavam a ligar para combinar a entrega do aspirador de secreções e do oxigénio. Tudo extraordinariamente rápido. E de repente tínhamos a nossa casa transformada num hospital! Tínhamos uma Carminho com sonda, com oxigénio, com um ventilador, com um oximetro e com uma tala de Koszla para abdução da anca. O que não nos incomodava rigorosamente nada porque tínhamos o que mais desejávamos: estarmos os cinco em casa, juntos! E ali junto da família ela iria superar tudo.








As emoções de estar quase dois meses fechada num hospital

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Quantas coisas fazemos em cinco meses e meio?

Dois meses foi o tempo que a Carlota esteve na neonatologia. Três meses e meio foi o tempo que esteve a Carminho. 

Na neonatologia ia dormir a casa e embora parte do coração ficasse naquele serviço, a outra metade conseguia assim colmatar as saudades da Constança. Foi ela o nosso equilíbrio durante os meses de neonatologia, aquela que ao final do dia nos fazia sorrir e levantar a moral para mais um dia de luta. Foi-nos fundamental. Penso muitas vezes que se isto tivesse acontecido numa primeira gravidez não teria a força e determinação que tive para enfrentar tantas batalhas. 

O segundo internamento da Carminho (com vírus sincicial respiratório) foi de quase dois meses e esse tempo foi passado inteiramente com ela no hospital, dia e noite. Foi lá que passamos as duas o natal, o meu aniversário.

Na fase inicial estava completamente focada na Carminho e na sua recuperação. Foi levada ao limite (ou como os médicos me disseram muitas vezes: esteve mais para lá do que para cá) e o estado de saúde dela ainda não era estável. Não foi fácil vê-la sofrer tanto, vê-la chorar com dor ou a gritar aflita enquanto lhe aspiravam secreções. Quando fazia a toma do antibiótico tinha sempre que ser picada novamente e era picada imensas vezes até lhe encontrarem uma veia. Já tinha sido tão picada ao longo de tanto tempo que era mesmo difícil encontrar uma veia permeável. O choro dela era como facas a cortarem-me. Desejava sempre trocar de papel com ela. Respirava fundo, mantinha a calma e pensava que só estava a ser feito o que tinha mesmo que ser feito para ela melhorar. Sempre com o máximo de profissionalismo e acima de tudo amabilidade de quem cuidava dela. E sei que também lhes custava muito. 









Os dias passavam e o estado dela estabilizou. Mas embora estivesse estável estava também estagnado. Não havia forma da quantidade de secreções reduzir nem de conseguirem  baixar o débito de oxigénio. Cada vez que reduziam um poucos as saturações caíam de imediato. 
No início os dias foram passando e eu mentalizei-me que ia ser um internamento longo, daí ter vivido pacificamente o dia a dia sem ansiedades. Isto durante as primeiras semanas. A partir de uma certa altura comecei a desesperar. Não via nenhuma evolução que me fizesse criar expectativas em relação ao dia da alta. Os dias passavam e o estado dela era sempre o mesmo, sem melhoras nenhumas. 

Vivia num hospital, sozinha num quarto com a Carminho sem ter com quem conversar, almoçava e jantava sempre sozinha (comida maravilhosa devo dizer, sem qualquer ironia, era realmente boa), sem conseguir descansar praticamente nada e tudo isto era insignificante para mim. O foco não era esse e o que me estava a magoar não era isso. O que ao longo dos dias foi pondo em causa a minha labilidade emocional era o sofrimento da Carminho e o facto de estar longe das minhas outras filhas. Só ia a casa na sexta-feira à noite e regressava ao hospital no sábado ao final da tarde. Não suportava a dor de não poder estar presente nos primeiros meses de vida da Carlota, ela só teve a mãe presente a partir dos seis meses, de não lhe dar colo nem mimo. A Constança estava na fase em que mais precisava de mim, de maior carência afectiva e eu não estava. Dizia a toda a gente: “mamã hopital Minho, Shasha e Coca casa Papã”. Ainda hoje quando lhe digo que vou ao hospital fazer o que quer que seja grita “não!”. 

Não havia dor maior para mim do que estar privada delas, do que não poder ser mãe delas na sua totalidade. Foram dois meses assim. Penso tantas vezes na quantidade de coisas que se faz em dois meses e no quanto dois meses é imenso tempo. 


No total passamos cinco meses e meio dentro de hospitais. É quase meio ano. Naquele momento nem tive noção do tempo. Eram tantos focos, viver o dia a dia tão intensamente que o tempo foi passando sem que eu percebesse.

Diagnóstico confirmado e um acessório novo

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Já tinha passado um mês desde o início do internamento. A minha semana era passada com ela no Porto e só ia a casa dormir de sexta para sábado. No sábado ficava em casa com a Carlota e a Constança e regressava ao hospital ao fim do dia. Sentia-me incompleta em qualquer um dos sítios. No hospital custava-me horrores porque estava privada das duas irmãs e não estava a acompanhar o crescimento delas, em particular o da Carlota que estava a passar os primeiros meses sem mim. Em casa sentia que podia fazer falta no hospital e a Carminho estava muito ligada a mim porque passava o tempo todo comigo e chorava imenso com o pai. O meu coração não sossegava em nenhum dos sítios.

A Carminho estava estável mas dependente de oxigênio. Bastava reduzir um pouco e as saturações caíam. As secreções também não davam tréguas e continuava a precisar de ser aspirada antes de cada mamada. Praticamente só se alimentava por sonda, a quantidade de leite que bebia pelo biberão era mínima (cerca de 10ml). Com cinco meses e meio apenas conseguia tolerar 40/50ml de leite e por isso o aumento de peso era mínimo. Pesava pouco mais de 2kg. 

Como tínhamos faltado à consulta de ortopedia, porque a Carminho estava internada, pediram ao ortopedista que a fosse avaliar ao internamento. Havia suspeita de luxação da anca e precisava de ser vista. 

Nessa manhã o ortopedista foi vê-la e a suspeita foi confirmada. A Carminho tinha efectivamente luxação da anca e ia ter que usar uma tala. Nada que me surpreendesse porque sinceramente já estava preparada para isso.

A tala costuma resolver este tipo de luxações mas a taxa de sucesso é maior quando colocada mais cedo. A Carminho estava quase com seis meses e o médico alertou que iam tentar corrigir assim mas que seria difícil, caso não corrigisse teria que ser operada. 

Três dias depois a tala chegou e o ortopedista foi colocá-la. Aquilo não era de todo confortável. A posição das pernas era incomoda e a única posição em que a Carminho conseguia estar era deitada em dorsal (de barriga para cima). Não podíamos retirar para nada. A muda de fralda e o banho tinham que ser com a tala e como tal o banho era com compressas húmidas, não podia ser de banheira. Também só ia poder usar vestidos porque as calças não davam para vestir. No mínimo seriam três meses com aquela tala. Ao contrário do que pensei ela adaptou-se lindamente e mal acabou de ser colocada ficou como se não lhe tivessem colocado nada. Custou-lhe menos a ela do que a mim que precisava de ganhar traquejo a manusea-la com a tala. Até o colo não tinha o mesmo sabor porque o contacto pele a pele diminuiu muito, havia aquele objecto entre nós e dei por mim diariamente a apetecer-me tirar aquilo tudo só para lhe poder dar colo e abraçá-la em condições.



O Natal no hospital

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Era o primeiro Natal das gémeas e o primeiro Natal em que a Constança já lhe atribuía algum significado, já que estava com 21 meses.. Era o primeiro Natal, desde que trabalho, que não ia trabalhar no dia 25 e não podia estar mais feliz por ser o primeiro a cinco, em casa. Tínhamos planeado passá-lo na nossa casa com a família visto que não podíamos sair com as miúdas por indicação médica. Tinha-lhes comprado uma roupinha a combinar e uns pijamas natalícios  e estava em pulgas para ver a reação delas, em particular da Constança, a todo aquele ambiente. A árvore de natal tinha sido feita no dia 1 de Dezembro, como habitualmente, com a ajuda da mana mais velha  e metade já não existia porque a Constança ia brincando com as decorações e tirava-as. Nem nos meus piores pesadelos pude imaginar que tudo isto não ia passar de uma miragem e que a dez dias do Natal a Carminho iria passar por mais uma prova de fogo e voltar para o hospital por tempo indeterminado. 


Faltavam quatro dias para o Natal quando saiu dos intensivos e foi transferida para o Porto e eu sabia perfeitamente que não havia a mínima possibilidade dela ter alta até ao dia 25, portanto aceitei e desvalorizei. Natais há muitos e no próximo seria diferente. 

No dia 24 de manhã fui a casa enquanto o pai ficou no hospital. Estive com as minhas filhas, almocei com elas, enchi-as de beijos e mimos, brincamos imenso, a Constança conseguiu derrubar a árvore de natal e ficar debaixo dela, vesti-as a rigor, tirei-lhes uma dezena de fotografias, deixei-as com os meus pais e fui para o hospital, triste mas sem dramatizar. Íamos passar lá os três a consoada. 




Há projectos incríveis e pessoas ainda mais incríveis e o “música nos hospitais” é só das coisas mais bonitas que já vi. Quem é que em plena véspera de Natal, quase na hora da consoada, deixa as suas famílias para ir aquecer os corações de quem está mais vulnerável? Foi exactamente isso que aquelas duas senhoras com vozes de mel fizeram. Escusado dizer que me fartei de chorar ao ouvi-las, não por estar ali naquele dia mas pela beleza do momento que nos proporcionaram e pelo gesto delas.

Nessa tarde o jantar foi servido no quarto porque o refeitório estava fechado. Vesti o pijama natalício à Carminho e jantámos por volta das 18h. E depois ficamos ali os dois a dar colo e mimo à nossa pequenina até ela adormecer. Depois o pai regressou a casa.  Por volta das 21h o Pai-Natal (no caso era a “enfermeira Natal”) foi ao quarto entregar um presente à Carminho, um mobile que usou sempre depois da alta para adormecer, e mais uma vez não contive as lágrimas. Foi incrível a forma como todos se articularam para tentar tornar  aquele dia no mais mágico possível e manter as tradições de Natal. Não foi de todo o Natal que idealizei mas foi o que as circunstâncias o permitiram e gosto de encarar estas experiências como enriquecedoras e no caso foi enriquecedora a nível pessoal e emocional. Foi um Natal diferente, de coração apertado por estar longe das minhas outras filhas mas não deixou de ser especial, vivi o verdadeiro Natal dos hospitais. 


Os dias de internamento no Porto

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A Carminho foi transferida para o Porto no dia 20 de Dezembro. Estava estável mas ainda não estava fora de perigo. Como referi anteriormente o vírus sincicial respiratório é altamente mortal em bebés prematuros e o tratamento continuava. Tratamento com medicação, cinesiterapia respiratória e aspiração de secreções antes de cada mamada. 

Estava num quarto isolada e o tempo era passado a distraí-la com brincadeiras e nos cuidados de vida diários. A Carminho era uma bebe muito sossegada e raramente chorava, se a deixasse o dia inteiro deitada ela ficava mas o objetivo era estimula-la e dar muito mimo enquanto ali estivesse. Como estávamos sozinhas no quarto não havia contacto quase nenhum com as outras mães, apenas um bom dia ou boa tarde de passagem no elevador. 

As refeições eram feitas no refeitório que ficava dois ou três pisos abaixo( já não me recordo). É o único ponto negativo que aponto porque quando se aproximava a hora das refeições começava a entrar em stress a tentar adormecê-la para poder ir sem a deixar a chorar, coisa que acontecia quando deixava de me ver. Muitas vezes não conseguia,
bastava avisar a equipa de enfermagem e havia sempre alguém que ficava a dar um olhinho. Quantas vezes chegava ao quarto e estavam (algum enfermeiro ou auxiliar) ao lado da cama a cantar para ela ou a fazer brincadeiras para a distrair. Comia sempre em tempo recorde. Costumavam dizer-me que eu não mastigava a comida, engolia e era bem verdade. Não gostava de sobrecarregar ninguém e por isso as minhas ausências eram o mais curto que conseguia.

O que mais me custou neste internamento da Carminho era o facto dela já ter mais noção de tudo e manifestar mais a dor. Tinha quatro meses e meio e quando via um elemento da equipa de enfermagem a entrar no quarto já sabia que não era pelos melhores motivos, embora muitas vezes só fossem perguntar se estava tudo bem. Seguia-os religiosamente com o olhar o tempo todo e diziam na brincadeira que ela era uma cusca. 
O meu despertador tocava de três em três horas para pedir o leite e consequentemente ao enfermeiro que a viesse aspirar. Custavam-me horrores os gritos dela ao ser aspirada mas sabia que era para o bem dela. Sentia que também custava a qualquer pessoa que o fizesse. Via-lhes isso na cara e eram extremamente cuidadosos com ela. Mas o que me custava verdadeiramente era a medicação endovenosa. Não pela medicação em si mas pelo facto do cateter obstruir praticamente a cada administração e ter que ser puncionada novamente. Pesava pouco mais de dois quilos e há quatro meses que andava a ser puncionada por isso as veias dela eram miseráveis. Isto implicava que tivessem que picar várias vezes, em vários sítios, até encontrar uma veia permeável. Quando digo várias vezes eram geralmente quatro/cinco vezes (às vezes mais). Cheguei a comentar que lhes tirava o chapéu porque aquilo para mim nem eram veias, eram vasos capilares. Os gritos dela eram ensurdecedores e via o desespero na cara dos enfermeiros por lhe estarem a provocar aquele sofrimento, pediam-lhe desculpa  mas tinha que fazer o antibiótico até ao final e não havia outra forma. Lembro-me de na fase final do antibiótico ter que ser puncionada na cabeça, pouco acima da orelha. Foi de madrugada e levaram-na para a sala de tratamentos, quando regressou e vi chorei baba e ranho a noite toda. Cheguei a questionar-me muitas vezes se todo o sofrimento que ela passou desde que nasceu não deixaria sequelas a nível psicológico, traumas mas garantiram-me que não.




Faltavam quatro dias para o Natal e já sabia que não havia qualquer hipótese dela ter alta até lá. Tentei abstrair-me disso, esquecer que era Natal e encarar como uma época perfeitamente normal. Quando tivesse alta teríamos muitos mais motivos para comemorar.

Os seis dias da Carminho nos cuidados intensivos

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Foram seis os dias que a Carminho esteve nos cuidados intensivos no Pediátrico de Coimbra e foram também seis os dias que eu estive lado a lado com ela e consequentemente sem ver as irmãs. Durante cinco dias a Carminho esteve sedada (coma induzido), não reagia a nada e era manipulada para posicionamentos, higiene e tratamentos. 

Eu ficava com ela até à 1h, sensivelmente, depois ia (tentar) dormir e acordava religiosamente às 7h para poder tomar o pequeno-almoço bem cedo e entrar no serviço até às 8h. As horas que estava longe dela não ficava sossegada por medo que algo pudesse acontecer e eu não estivesse lá e por isso gostava de ficar ao lado dela durante o máximo de tempo possível. O dia era passado alternando entre o cadeirão e o estar de pé a fazer-lhe mimos, saía apenas para fazer as refeições principais. 

Não posso dizer que estes tenham sido os dias mais difíceis de todo o trajecto da Carminho porque não o foram. Ao fim do segundo dia os médicos começaram a dar um prognóstico mais positivo e eu estava confiante de que aquele pequeno Ser de apenas 2kg ia sair daquela prova de fogo vitoriosa. O facto de estar sedada também não me deixava muito nervosa. Como tinha que ser aspirada várias vezes ao dia e também puncionada algumas vezes, pensava que pelo menos assim ela não sofria. O que me custava mesmo era não poder fazer mais do que mimos, não poder dar-lhe colo. 

Ao contrário de quando ela esteve na neonatologia a relação com os pais das outras crianças não ia além do “bom dia” e “boa tarde” e sentia-me ali um bocadinho sozinha. Às vezes o facto de termos com quem conversar ajuda muito e ali não tinha mesmo com quem o fazer. Andava sozinha, fazia as refeições sozinha e passava o tempo com a Carminho no isolamento, o que também não me permitia estar com mais ninguém. 

O facto de estar longe das irmãs também me estava a perturbar muito. A Carlota estava com quatro meses e eu ainda só tinha conseguido passar praticamente 15 dias na íntegra em casa com ela e a Constança estava com 21 meses e praticamente privada da mãe há três e meio. Estava a ser muito difícil gerir tudo ao mesmo tempo e apesar de ver que a Carminho estava a estabilizar as minhas emoções estavam à flor da pele. Dava por mim a chorar várias vezes ao dia e por mais que tentasse controlar não conseguia. O stress de tudo aquilo foi tanto que no dia seguinte à transferência da Carminho para Coimbra fiquei sem leite. Até aquele dia tinha conseguido amamentar e extrair leite, naquele dia pedi a máquina para poder extrair leite para a Carminho e nem uma gota saiu. Nunca mais tive leite.

No quinto dia da Carminho em Coimbra o médico disse-me que iam retirar o ventilador e começar a retirar a sedação, que durante aquele dia ela ia acordar. Que boas notícias. E assim foi. Ao início da noite a Carminho estava desperta mas muito agitada, não parava de chorar um minuto. Não fui jantar, não a ia deixar ali assim. Fiquei ao lado dela a tentar acalma-la com as estratégias que tinha ao meu alcance. Não lhe podia dar colo por isso só lhe podia dar mimo, falar com ela e cantarolar. Nada resultava mas pelo menos eu estava ali e ela sabia que não estava sozinha. Por muitas vezes que a enfermeira do turno da noite me tivesse dito para eu ir descansar, não arredei o pé dali até ver que a Carminho tinha adormecido. Ela estava numa sala completamente fechada e sabia que se estivesse a chorar dificilmente a ouviam com a agitação do serviço. Deviam ser 3h quando a Carminho finalmente adormeceu por exaustão. Subi para o quarto mas não fui sossegada, só me vinha à imagem ela acordar e ficar sozinha a chorar sem a mãe lá ao lado. Dormi 3h e desci novamente. Já a Carminho estava acordada a chorar. 






Passadas umas horas entrou no isolamento o enfermeiro do turno da manhã. Não me lembro do nome nem da cara dele mas jamais me esquecerei de toda a arrogância e frieza. A Carminho continuava a chorar e eu estava em pé ao lado dela a fazer-lhe mimos na cara e a tentar aconchega-la como podia. Ouço algo do género, dito como um tom agressivo: Ó mãe não se ponha cá com essas coisas! Se está a chorar deixe chorar até adormecer. Ela é muito esperta e já percebeu que se chorar tem o que quer. Vá-se sentar se faz favor. 
Disse-lhe que não a ia deixar a chorar sem a fazer sentir-se acompanhada por mim e diz-me: Você com três filhas se vai para casa fazer isto às três não faz mais nada! É editá-las na cama, cobrir e deixar chorar até adormecer.
Lembro-me de me apetecer responder: e qual é o seu problema se não fizer mais nada da vida? Quem é você para vir obrigar-me a fazer isto ou aquilo? Sabe lá você o tempo que as minhas filhas já passaram sem a mãe e aquilo que já sofreram para eu ter a lata de as deixar a chorar sozinhas num berço. 
Respirei fundo e não respondi. Passado pouco tempo veio dar banho à Carminho. Dei-lhe banhos sem conta dentro da incubadora e estava mais do que familiarizada com isso, com toda uma manipulação de fios, sondas, e cateteres. Mas naquele dia, segundo ele, tudo o que eu fazia estava errado e era motivo de repreensão. Até no momento de pegar na minha filha fui repreendida porque não era assim que se pegava. E tudo isto com tom de voz rude e agressivo. 

Antes do almoço a médica veio dizer-me que a Carminho ia sair dos intensivos e como somos de Viana perguntou se preferíamos ser transferidas para mais perto. Respondi que sim mas que queria que a Carminho ficasse onde fosse melhor para ela e que se o melhor fosse ficar lá seria lá. Disse-me que iria transferi-la para o Porto, para o hospital onde nasceram. Fiquei feliz. Não me canso de dizer que tenho um carinho especial por aquele hospital e sabia que estaria nas mãos dos melhores. 
Era então necessário preparar a Carminho. Chegou novamente o enfermeiro e começou a aspira-la. A Carminho gritava e eu num tom de voz suave ia dizendo: pronto meu amor vai passar, tem calma. Ouço então: Se é para estar aqui com esse discurso saia por favor! Espere lá fora e deixe-me fazer o meu trabalho. 
Estava incrédula com aquele senhor. Respondi que não era necessário e que não falaria até ele terminar. Tinha uma revolta em mim que me dava vontade de perder a razão mas a Carminho já ia embora e não valia a pena. Fomos extremamente bem tratadas durante todo o tempo que lá estivemos e não ia ser ingrata a toda uma equipa por causa de um elemento.


Fui almoçar apressadamente e fui também ao quarto buscar as minhas coisas. Quando cheguei aos intensivos a Carminho já estava pronta para sair e pouco tempo depois chegou a médica que ia fazer a transferência. E saímos para mais uma viagem, desta vez até ao Porto à casa mãe da Carminho.

A transferência para o Hospital Pediátrico de Coimbra

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A Carminho tinha sido ventilada novamente, pela equipa de Coimbra, e estava pronta. O destino era a unidade de cuidados intensivos do Hospital Pediátrico de Coimbra. 

Saímos da neonatologia (médico, enfermeira, condutor da ambulância, eu e o meu marido), entramos no elevador e descemos até ao piso 0. A porta principal do hospital já estava fechada e tínhamos que sair pela urgência. Olhei para a incubadora. Estava ali a minha filha, tão pequenina, apenas com uma fralda, sem nada a cobrir a incubadora. Não que isto fosse o mais importante naquele momento mas à medida que nos aproximávamos da porta da urgência pensava na minha filha a atravessar o corredor da urgência apinhado de gente com os olhares curiosos postos nela. Tinha bem presente na memória os olhares das pessoas no dia anterior quando entramos na urgência, não eram olhares de maldade mas de curiosidade, e confesso que me incomodava um pouco. Chegamos à porta e mal se abriu a enfermeira, quase como se me tivesse lido os pensamentos, olhou para o corredor e depois para a incubadora, tirou o casaco e cobriu-a. Estava uma noite gelada. Confesso que naquele momento fiquei de lágrimas nos olhos. Que orgulho senti nesta classe profissional, em profissionais assim que tanto a dignificam. Atravessamos o corredor e quando atravessamos a porta de saída vi uma antiga colega de curso a correr na minha direcção e dar-me um abraço apertado que naquele momento era tudo o que eu precisava. Puseram a incubadora dentro da ambulância, despedi-me do meu marido e entrei para o banco da frente. Só pedia para que nada acontecesse até chegarmos ao hospital, que ela se aguentasse. Lá os recursos eram outros. 

O médico sentou-se mesmo atrás de mim e foi falando comigo. Explicou-me que dado o esforço respiratório a que esteve sujeita os pulmões dela tinham colapsado (atelectasia pulmonar) e daí a necessidade do ventilador. Disse o que eu já sabia, que a situação era grave.

Antes de chegarmos ao Porto a Carminho teve um acesso de tosse e tivemos que parar para lhe aspirarem secreções. O episódio repetiu-se mais duas vezes até chegarmos a Coimbra e confesso que a calma da equipa me deixou serena e não alarmei.

Chegamos a Coimbra por volta das 23h. Estava um frio de morrer ou não estivéssemos em dezembro. Tiraram a incubadora e mais uma vez a enfermeira tirou o casaco para cobrir a incubadora porque íamos entrar novamente pela urgência. Percorremos corredores e mais corredores, lembro-me de ter pensado que aquele hospital parecia um labirinto e ainda hoje penso o mesmo, e chegamos à unidade de cuidados intensivos. Pediram-me que aguardasse na sala de espera enquanto iam monitorizar a Carminho. Demoraram cerca de 1h até me chamarem. 

Os procedimentos eram os mesmos da neonatologia. Bata, lavagem e desinfeção das mãos e desta vez incluía também máscara e luvas. A Carminho estava no isolamento e eu tinha que me equipar com tudo para não prejudicar ainda mais o seu estado de saúde. Percorri o corredor acompanhada por uma enfermeira e quando entramos na unidade a Carminho estava sozinha numa sala enorme, toda vidrada, mesmo em frente ao balcão onde estão os médicos e enfermeiros. Entrei numa porta onde tinha um lavatório e um carrinho com batas descartáveis, máscaras e luvas. Tinha que me equipar e sempre que saía ia tudo para o lixo. Aí tinha uma porta directa para a sala da Carminho. Entrei e o impacto foi grande. Perdi a conta ao número de bombas de perfusão, monitores, sensores. Tudo em número muito maior do que quando esteve na neonatologia. Estava inchadissima. Parecia ter mais cinco quilos do que tinha na realidade. 




Fiquei ali com ela cerca de 1h a fazer-lhe mimos e a dizer-lhe o quanto era importante que não desistisse. Passado esse tempo a enfermeira voltou e pediu-me que fosse descansar. Tinham quartos para os pais no piso superior. Perguntei-lhe senão podia ficar ali no cadeirão mas ela convenceu-me a ir descansar dizendo-me que não ia ficar lá a fazer nada. Despedi-me e fui acompanhada por uma auxiliar. Já deviam ser aproximadamente 2h. Os corredores eram escuros e desertos e pensei que era um bocado assustador andar ali. Fui para o quarto e descansei o que pude. Tinha receio que acontecesse alguma coisa e ninguém me avisasse e tinha ainda mais receio de entrar no dia seguinte nos intensivos, não sabia o que podia encontrar. 

O estado da Carminho é muito crítico

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A neonatologia e a pediatra ficam no mesmo piso, uma de cada lado do corredor. A Carminho tinha acabado de entrar na neonatologia dentro de uma incubadora, acompanhada pelos profissionais de ambos os serviços. Só nos tinham dito que a tinham que ventilar com urgência e mais nada. Não tínhamos um diagnóstico, nem sabíamos o que se estava a passar. Ficamos os dois a chorar no corredor que separa os dois serviços. Eu tinha uma dor emocional que parece que me sufocava. Chorava e só conseguia repetir: a minha filha não merece estar a passar por isto! Não acredito que ela esteja a passar novamente por isto. Não acredito que estamos em risco de a perder depois de tanta luta!

Ao ver-me naquele estado a auxiliar da pediatria veio buscar-me e levou-me para a sala comum do serviço. Deu-me um chá. Entretanto vieram duas mães apoiarem-me, uma ex colega de profissão e outra mãe que eu não conhecia. Eu só dizia que não podia perder a minha filha, que não era justo para ela depois do que já tinha lutado. Repetia isto sistematicamente e elas faziam o melhor que podiam para me consolar. Não fiquei lá muito tempo porque eu queria ir para a porta da neonatologia e fui. 

Fora da neonatologia tem uns sofás. Na parte superior da porta tem um vidro e através desse vidro consegue-se ver o corredor e a outra porta. A outra porta também tem um vidro na parte superior e, embora não se visse muito bem, conseguia ver-se a movimentação dentro do serviço. Colei-me a esse vidro para tentar perceber o que se estava a passar. Entretanto já passava bastante da hora da troca de turno e as enfermeiras do turno da manhã saíram. Perguntei-lhes o que se estava a passar mas não queriam ser elas a dar-me esse tipo de informações. Apenas me disseram que era muito grave e que nos devíamos preparar para tudo. Disseram-nos para ter muita força e deram-me um abraço apertado. 

O meu primo e a esposa estavam na parte de dentro do serviço com as filhas mas não sabiam que a bebe que tinha entrado era a Carminho. Toda a movimentação em torno da Carminho era muito silenciosa e só algum tempo depois é que ouviram o nome dela e pensaram que podia ser ela. Vieram à porta ver se estávamos lá e disseram-nos que havia toda uma equipa de volta dela. Ficaram ali sentados connosco. 

Tinha passado pouco tempo desde que a Carminho tinha entrado na neonatologia e começou uma movimentação que me estava a deixar ainda mais em pânico. Eram profissionais atrás de profissionais, dos mais diversos serviços, a entrar e sair apressadamente do serviço e com ar apreensivo. Não consigo descrever o medo que senti. Em momentos anteriores tive medo de a perder mas aquele dia foi o dia em que estava mais convicta de que isso estava prestes a acontecer. A pediatra da neonatologia saiu para uma cesariana e disse-me de passagem que estava muito complicado para a ventilar. Percebi o porquê de todo aquele movimento de profissionais.

Cerca de 1h depois saiu a pediatra que a tinha avaliado de manhã. Perguntei-lhe o que se estava a passar. Pediu-me que aguardasse um pouco porque primeiro precisava de acabar de tratar de tudo e entretanto iria falar comigo. Percebi que a prioridade dela naquele momento era a Carminho e só tinha que aceitar. Voltou a entrar alguns minutos depois.  Continuavam a entrar e sair profissionais. Cerca de 1h depois a pediatra saiu e falou connosco. Explicou-nos que a Carminho tinha o vírus sincicial respiratório, o vírus mais temido pelos pais de prematuros dado a elevada taxa de mortalidade, e que a situação dela era muito delicada. Já estava ventilada e sedada (o chamado coma induzido). Perguntei-lhe se era mesmo para o Santa Maria que ela ia ser transferida e disse-me que sim. Agradeci-lhe por tudo o que fez e pela rapidez com que ela e a colega tinham agido. De seguida liguei para o Santa Maria. Precisava de saber se eu podia ficar lá de noite e de dia à beira da Carminho ou se à noite não deixavam ficar. Nesse caso teria de pensar numa estratégia. Não conheço muito em Lisboa por isso teria de procurar um sítio para dormir ao lado do hospital. 

A pessoa com quem falei era o director do serviço e garantiu-me que não iam receber nenhum bebe de Viana, estavam à espera de um menino Braga. A minha cabeça estava um caos. Mas então para onde ia a Carminho? 

Entretanto a enfermeira veio dizer-nos que podíamos ver a Carminho. Pedi-lhe que falasse com a médica por causa da situação da transferência enquanto nos dirigíamos para a incubadora. A menina que ainda há poucas horas estava no meu colo de olhos fixos nos meus estava agora sem reação, com um ventilador a respirar por ela. Não se aguenta ver uma filha assim. É demasiado para uma mãe. 

Uns vinte minutos depois chegou a equipa que vinha buscar a Carminho. Perguntei para onde íamos e disseram-me que íamos para Coimbra. Explicaram que no primeiro contacto da pediatria não tinham vagas mas que entretanto conseguiram transferir um menino e ligaram a dizer que afinal podiam receber a Carminho. Fiquei tão feliz! Coimbra era bem mais perto do que Lisboa e não me sentia tão longe das minhas filhas. Entretanto avaliou a Carminho e pediu-me que saísse um pouco. O tamanho do ventilador não era o adequado para ela e iria ter que o tirar e ventilar novamente. Mais um procedimento evasivo. Aquele pesadelo parecia não ter fim.

A Carminho vai ser transferida de urgência para os cuidados intensivos do Santa Maria

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Eram cerca das 9h quando a enfermeira do turno da manhã foi avaliar os sinais vitais à Carminho. Eu continuava com ela no colo, achava que assim a poderia proteger de qualquer coisa que pudesse acontecer, e perguntei à enfermeira se a Carminho ia ser avaliada por um médico. Era um sábado. Explicou-me que ao fim-de-semana não há visita médica no serviço mas que, em caso de necessidade, podiam chamar os pediatras que fazem urgência. Disse-lhe o que pensava. Que achava que a minha filha não estava bem, estava notavelmente a fazer um esforço respiratório tremendo e que dado o estado em que ela entrou na urgência na tarde anterior achava que ela deveria ser avaliada. Concordou comigo. Pediu-me que aguardássemos um pouco, que ia ficar atenta e que em caso de necessidade chamaria.

Deitei a Carminho no berço apenas para trocar de roupa e voltei a sentar-me na cadeira com ela no colo. Ela não tinha descansado praticamente nada, apenas dormindo por curtos períodos e via que estava exausta. As saturações dela continuavam na casa dos 70/80 a fazer oxigénio e por volta das 10h quando a enfermeira veio novamente avaliar a Carminho disse que realmente não estava a gostar do estado dela e que ia telefonar para a urgência para pedir às pediatras que subissem. Agradeci com vontade de a abraçar e fazer uma festa. Estava a ver a situação a agravar imenso e cada vez tinha mais medo. 

Poucos (mas mesmo poucos) minutos depois tinha duas pediatras no quarto a avaliar a Carminho. Pediram análises e RX. E foi tudo feito muito rapidamente. No espaço de tempo de meia hora estavam feitas as análises e o RX. Tínhamos que esperar pelos resultados que ainda iriam demorar algum tempo e aproveitei para ir a casa tomar um banho e trocar de roupa enquanto o pai ficou no hospital. 

Vivemos a cerca de 10m de carro do hospital. Queria ser o mais rápida possível e por isso cheguei a casa e fui imediatamente tomar banho. No final ainda tinha que deixar tudo pronto para o pai vestir a Constança e levá-la à festinha de natal da creche. Era a primeira festinha dela e eu não ia estar lá. Tinha acabado de sair do banho quando tocou o telefone. Era o meu marido. Estava com uma voz aflita e só conseguiu dizer: anda rápido! A Carminho vai ser transferida de urgência para os cuidados intensivos  do Santa Maria em Lisboa. Fiz várias perguntas como: Porquê? O que tem ela? O que te disseram? Como é que ela está? Mas não sabia mais nada porque ainda não lhe tinham dito mais nada. 

Vesti-me a correr enquanto chorava compulsivamente e fui para o hospital. No cruzamento a seguir à minha casa estava a GNR a fazer uma operação STOP e eu parei. Estava a chorar e pedi por favor que me deixasse ir embora explicando rapidamente a situação. O agente podia ter desconfiado de mim mas em vez disso só me pediu que tentasse ficar calma e que dirigisse com cuidado. Lembro-me de ter pensado no quão ele tinha sido bom e compreensivo. 

Pelo caminho só conseguia repetir vezes sem conta: porquê que a minha filha tem que estar a passar por isto? Ela não merecia mais esta luta depois de tudo o que já sofreu! Tinha uma revolta que nem consigo explicar. Tínhamos tido tanto cuidado para ela não ficar doente que aquilo não podia ter acontecido. 


Cheguei ao hospital e mal saí do carro desatei a correr até chegar ao corredor da pediatria. Quando atravessei a porta já estava a Carminho a sair dentro de uma incubadora acompanhada por médicos e enfermeiros da pediatria e da neonatologia. Perguntei o que se estava a passar e para onde a estavam a levar. A enfermeira da neonatologia, que já me era tão familiar, deu-me um abraço apertado e disse-me que a iam levar para a neonatologia. Que iam ter que a ventilar. E sem me adiantarem mais nada seguiram com ela enquanto eu e o meu marido ficamos ali a chorar em pânico. 

A noite na pediatria

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Após o episódio de urgência em que encontramos uma excelente equipa e conseguiram estabilizar a Carminho, subimos para o internamento de pediatra. Fomos encaminhadas para a sala de tratamentos e acolhidas por duas enfermeiras de extrema simpatia. Tinham definido um quarto partilhado com um menino de dez anos que estaria com uma gastroenterite mas mal viram a Carminho disseram que iriam mudá-la para um quarto isolado. Era um risco enorme tê-la num quarto partilhado. Começaram a monitoriza-la mas ela era tão pequena que tiveram que pedir algum material à neonatologia e todo o processo ocupou-as imenso tempo. 

Passado cerca de 1h fomos encaminhadas ao quarto. Deveriam ser 20h30/21h. Perguntei qual era o diagnóstico da Carminho. Foram ler os registos da médica e disseram-me que o que estava escrito era “falta de ar”. Pensei para mim: como é que a minha filha tinha entrado no estado em que entrou e o diagnóstico era “falta de ar”. Mas logo de seguida pensei que isso era irrelevante e que o importante era ela ficar bem. O turno terminou às 24h e até essa hora foram incansáveis passando várias vezes no quarto para avaliar a Carminho e perguntar se estava tudo bem. Até aí ela estava aparentemente bem.

A Carminho estava num berço e eu tinha um sofá cama, que abri e estendi os lençóis para tentar descansar um pouco. Por volta das 00h30, após ter trocado de roupa, ia deitar-me mas antes fui-lhe dar um beijo. Quando lhe toquei com os lábios na testa percebi que estava a escaldar. Toquei à campainha. Alguns minutos depois entrou uma auxiliar e pedi-lhe por favor que chamasse alguém da equipa de enfermagem porque a minha filha estava com febre. Algum tempo depois entraram no quarto e após avaliarem os sinais vitais disseram que iam administrar paracetamol porque estava efectivamente com febre. Foi-lhe administrado e fiquei com ela no colo à espera que a temperatura baixasse. Cerca de 1h depois o quadro começou a agravar-se, as saturações de oxigénio começaram a baixar, não saiam da casa dos 70/80 (o normal para a Carminho seria acima dos 92) mesmo estando a fazer oxigénio. O monitor não parava de alarmar. Associado a esta baixa estava ainda uma respiração muito ruidosa e notava-se perfeitamente que estava em esforço respiratório. 




Toquei novamente e esperei. Não vinha ninguém . Voltei a tocar. Alguns minutos depois veio novamente a auxiliar e pedi que chamassem os enfermeiros. Disse-me que estavam a fazer a ronda e que iriam demorar. Expliquei a situação e disse que era urgente. De pouco adiantou. Passaram seguramente 20m e não entrava minguem no quarto. Comecei a desesperar. Toquei novamente. Veio novamente a auxiliar. Já de forma rude disse-me que já tinha chamado os enfermeiros mas que eu tinha que esperar porque estavam ocupados. Pedi por favor que lhes dissesse que as saturações não subiam e que a Carminho não estava bem. Senti-me muito impotente em não poder ajudá-la. E
Reconheço que dois enfermeiros para um serviço com tantas crianças é muito pouco mas não consigo justificar tanta demora após eu ter dito que era urgente. A Carminho tinha estado entre a vida e a morte poucas horas antes. Vieram algum tempo depois. Avaliaram novamente a temperatura e tinha baixado um pouco. Aumentaram o débito de oxigénio e disseram que era normal as saturações estarem baixas devido à temperatura. Até aí tudo bem. Mas não era só isso. O esforço respiratório dela era imenso e aquele ruído não era normal. Disseram que voltariam para a aspirar visto que estava cheia de secreções e já não era aspirada desde as 17h. 

Mantive-me com ela no colo sentada e aguardei que o aumento do débito de oxigénio a ajudasse. A questão é que o tempo ia passando e não via melhoras nenhumas. Continuava tudo na mesma. Ela não dormia e por muito ridículo que isto possa parecer os olhinhos dela não se desviavam dos meus e parecia que estava a pedir-me ajuda. As saturações de oxigénio continuavam na casa dos 70/80, ela não queria mamar e eu estava cada vez com mais medo. Era visível que a minha filha não estava bem. Aguardei que viessem aspira-la mas como já tinham passado umas 2h (eram sensivelmente 4h30) e não veio ninguém voltei a tocar. O processo foi o mesmo: auxiliar, espera, enfermeiros. Com a diferença que desta vez não tive que esperar tanto tempo. Perguntei se não era melhor ser avaliada por um médico. Disseram que não era necessário e repetiram-me que todos aqueles sinais eram normais e que eu nao precisava de ficar apreensiva. Não me convenciam. A Carminho não estava bem e eu estava a entrar em pânico. Desatei a chorar. E assim fiquei, a chorar com ela no colo, até às 9h me ter entrado a enfermeira do turno da manhã no quarto. Tinha tido a pior noite da minha vida e tinha esperança que esta enfermeira nos ajudasse. 

Hoje sei que essa enfermeira, da qual não me consigo lembrar do rosto depois da azáfama que foi esse dia mas lembro-me perfeitamente do nome, foi um dos anjos responsáveis pela salvação da minha filha. E se não fosse ela a ter-me dado ouvidos e a ter visto que a Carminho definitivamente não estava bem, a Carminho hoje não estava cá. Não estava mesmo! Porque o que aconteceu na noite anterior levou a Carminho ao limite da vida e deixou-lhe sequelas até hoje. 

15 de Dezembro: a terceira vez em que pensei que ia perder a Carminho

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Era uma sexta-feira. Aproveitei que estavam as duas a dormir a sesta para limpar a casa. Como elas tinham obrigatoriamente que comer de 3/3h eu punha o despertador para nunca me esquecer da próxima mamada. Tinha posto o despertador para a próxima vez que teria que dar o leite à Carminho e como geralmente a sesta delas era longa deixei-me estar descontraída a pôr a casa em ordem. Tocou o despertador e fui preparar o biberão. De seguida fui acordar a Carminho. 

Quando cheguei à beira do berço para acordar a Carminho vi que ela estava pálida, branca como a neve. Comecei a fazer-lhe festinhas na cara na tentativa de a acordar e mal lhe toquei a primeira vez senti que estava gelada. De repente deixei de raciocinar e comecei a abana-la freneticamente enquanto chamava bem alto por ela. Não respondia aos estímulos, não abria os olhos, não se mexia. Pensei que o pior tinha acontecido, pensei mesmo que a minha filha tinha morrido e desatei a chorar. Peguei nela ao colo e embrulhei-a numa cobertor quente. Continuei a tentar acorda-la já em pânico. De repente ouvi um gemido muito leve, tão tênue que pensei que o tinha imaginado. Mas não! Ela repetiu. Peguei no telefone e liguei ao 112. Aquelas perguntas todas que a pessoa que estava do outro lado da linha me estava a fazer eram uma autêntica perda de tempo naquele momento. Quando estamos aflitos queremos ajuda e não um bombardeamento de perguntas. Eu precisava de ajuda urgente! Lá me disse que ia enviar ajuda ao local. Tentei dar o biberão mas não reagia. Senti que a estava a perder a cada segundo que passava. 

Poucos minutos depois chegou a ambulância da Cruz Vermelha. Fiquei indignada quando os vi sozinhos sem a VMER. A minha filha não ia aguentar até ao hospital sem ajuda. Entrei para a ambulância e um dos tripulantes disse-me que a VMER estava a caminho. Fiquei mais sossegada. Arrancamos e uns metros mais à frente ouvi a sirene da VMER. Paramos na berma da estrada e estivemos 1h parados com o médico e o enfermeiro a fazer tudo pela Carminho. Picaram várias vezes e ela nem reagia. Ao fim de cerca de 1h arrancamos com os dois na ambulância à beira da Carminho. Eu tinha passado para o banco da frente mas os meus olhos continuavam focados naquela bebe tão pequenina que estava novamente a ser posta à prova. 

Chegamos ao hospital e ouvi o médico a dizer: via verde, sala de reanimação. E nesse momento entrei em choque. Até ali sempre tive noção de que era grave mas no meio de tanta azáfama ainda não tinha conseguido pensar e só naquele momento é que pus os pés bem assentes na terra. Ouvir “sala de reanimação”, atravessar o corredor da urgência apinhado de pessoas com os olhos postos na maca que acabava de entrar, ver a minha bebe perdida naquela maca tão grande a ser levada sem mim para aquela sala fez-me desabar. Nunca imaginei viver aquele pesadelo, nem que um dia aquele filme pudesse ser o meu. 

À entrada da sala de reanimação já nos esperavam rostos que me eram bastante conhecidos, as enfermeiras da urgência pediátrica e um médico da neonatologia. Entraram todos a acompanhar a Carminho com o médico e o enfermeiro da VMER. Entretanto foram entrando e saindo mais elementos da equipa da urgência. Eu fiquei mesmo à porta acompanhada pela tripulante da ambulância que foi incansável comigo, já não tinha mais o que me fazer para me consolar. 

Passado algum tempo saíram os dois elementos da VMER e também ficaram algum tempo comigo a tentar confortar-me. Agradeci-lhes por terem salvo a vida da Carminho. Não tenho dúvidas de que esteve na corda bamba dentro daquela ambulância e que eles foram os elementos chave para que ela tivesse entrado com vida no hospital.
Bastante tempo depois levaram-na a fazer um  RX e no final a enfermeira disse-me que a Carminho já está estabilizada e que ia subir para o internamento. Questionei se ia para a neonatologia ou para a pediatria e disse-me que ia para a pediatria visto já ter dois meses por idade corrigida mas que realmente fazia sentido ir para a neonatologia visto ser tão pequena, nem 2kg pesava, e tendo em conta que umas duas semanas antes foi internada na neonatologia quando se engasgou. Falou com a médica mas esta disse prontamente que ia para a pediatria porque já não tinha idade para a neonatologia. 

Pensei que o pior já tinha passado mas o pior ainda estava para vir.



Primeira consulta: primeira suspeita

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As consultas de crianças prematuras são imensas. E se por um lado até aborrece termos que estar sempre a correr para consultas por outro lado sentimo-nos muito mais seguros. 

Para além das consultas regulares no sistema nacional de saúde temos o contacto de todos os médicos e podemos ligar sempre que haja alguma intercorrência e seja necessário avalia-las antes da data da próxima consulta. Desde a alta que as nossas filhas são muito bem acompanhadas e vigiadas e estamos muito gratos por isso. Sempre fomos bem informados acerca de diagnósticos e envolvidos em todas as tomadas de decisões. Sempre sentimos que havia um trabalho de equipa entre nós pais, médicos e enfermeiros. 

Como elas tiveram alta a meio do outono o tempo já estava mais frio e já estávamos a entrar na época de gripes, constipações, infeções respiratórias, pelo que eram um motivo de preocupação para nós as salas de espera dos hospitais. Confesso que entrava mesmo em stress tal era o medo de poderem levar algum bicharoco para casa, o que no caso delas era muito preocupante. E se a maior parte das consultas eram na maternidade, onde maioritariamente estavam crianças, havia três especialidades que eram no Santo António, onde as salas de espera estavam repletas de adultos.

A primeira consulta da Carminho foi cerca de duas semanas após a alta. Ela era tão pequenina que na sala de espera quando a tirei da babycoque para lhe dar o biberão perguntaram se era um bebé real ou um nenuco. Ia a uma consulta de neonatologia e como aparentemente estava tudo bem não fui apreensiva. Após a avaliação a médica suspeita de uma displasia (ou luxação) da anca e encaminhou-a para ortopedia. Se se confirmasse, o que seria quase certo, a Carminho iria ter que usar uma tala, durante três meses, para corrigir. Não que fosse algo muito grave mas lembro-me de pensar que já chegava, que a Carminho já tinha tido a dose dela. 


No dia da consulta lá fomos nós ao Santo António para ser avaliada por ortopedia. A consulta era ao final da manhã e os médicos só estavam lá de manhã nesse dia. Chovia a cântaros e por azar apanhámos um acidente na via rápida entre Viana e o Porto e estivemos quase 2h em fila. Chegamos ao hospital tardissimo mas tirei a senha e aguardei até ser chamada pela administrativa para perguntar se ainda teria consulta. Mal entrei na sala de espera e a vi apinhada de pessoas, tinha seguramente cerca de 100 pessoas, passou-me tudo pela cabeça mas o que mais pensava era no famoso vírus sincicial respiratório que os médicos tanto me falavam. É um vírus com uma taxa de mortalidade elevada em prematuros e elas estavam a apanhar uma vacina mensal durante os meses de inverno para o prevenir. 

Encostei-me a um canto mais isolado para tentar evitar estar muito próximo das outras pessoas. A Carminho nem 2kg tinha e era um risco enorme. Passado cerca de meia hora chegou a nossa vez e a administrativa disse que já não estava lá o médico, já tinha terminado as consultas. Fiquei para morrer. Apesar de saber que o atraso foi nosso e o médico não tinha culpa nenhuma custava muito saber que tirei a minha filha de casa num dia de chuva e frio, desloquei-me ao Porto e esteve a pôr-se a jeito na sala de espera em vão. Viemos sem consulta e ficaram de enviar uma nova convocatória. 


Mas o pior estava para vir. Quatro dias depois o que eu mais temia aconteceu.