O Natal no hospital

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Era o primeiro Natal das gémeas e o primeiro Natal em que a Constança já lhe atribuía algum significado, já que estava com 21 meses.. Era o primeiro Natal, desde que trabalho, que não ia trabalhar no dia 25 e não podia estar mais feliz por ser o primeiro a cinco, em casa. Tínhamos planeado passá-lo na nossa casa com a família visto que não podíamos sair com as miúdas por indicação médica. Tinha-lhes comprado uma roupinha a combinar e uns pijamas natalícios  e estava em pulgas para ver a reação delas, em particular da Constança, a todo aquele ambiente. A árvore de natal tinha sido feita no dia 1 de Dezembro, como habitualmente, com a ajuda da mana mais velha  e metade já não existia porque a Constança ia brincando com as decorações e tirava-as. Nem nos meus piores pesadelos pude imaginar que tudo isto não ia passar de uma miragem e que a dez dias do Natal a Carminho iria passar por mais uma prova de fogo e voltar para o hospital por tempo indeterminado. 


Faltavam quatro dias para o Natal quando saiu dos intensivos e foi transferida para o Porto e eu sabia perfeitamente que não havia a mínima possibilidade dela ter alta até ao dia 25, portanto aceitei e desvalorizei. Natais há muitos e no próximo seria diferente. 

No dia 24 de manhã fui a casa enquanto o pai ficou no hospital. Estive com as minhas filhas, almocei com elas, enchi-as de beijos e mimos, brincamos imenso, a Constança conseguiu derrubar a árvore de natal e ficar debaixo dela, vesti-as a rigor, tirei-lhes uma dezena de fotografias, deixei-as com os meus pais e fui para o hospital, triste mas sem dramatizar. Íamos passar lá os três a consoada. 




Há projectos incríveis e pessoas ainda mais incríveis e o “música nos hospitais” é só das coisas mais bonitas que já vi. Quem é que em plena véspera de Natal, quase na hora da consoada, deixa as suas famílias para ir aquecer os corações de quem está mais vulnerável? Foi exactamente isso que aquelas duas senhoras com vozes de mel fizeram. Escusado dizer que me fartei de chorar ao ouvi-las, não por estar ali naquele dia mas pela beleza do momento que nos proporcionaram e pelo gesto delas.

Nessa tarde o jantar foi servido no quarto porque o refeitório estava fechado. Vesti o pijama natalício à Carminho e jantámos por volta das 18h. E depois ficamos ali os dois a dar colo e mimo à nossa pequenina até ela adormecer. Depois o pai regressou a casa.  Por volta das 21h o Pai-Natal (no caso era a “enfermeira Natal”) foi ao quarto entregar um presente à Carminho, um mobile que usou sempre depois da alta para adormecer, e mais uma vez não contive as lágrimas. Foi incrível a forma como todos se articularam para tentar tornar  aquele dia no mais mágico possível e manter as tradições de Natal. Não foi de todo o Natal que idealizei mas foi o que as circunstâncias o permitiram e gosto de encarar estas experiências como enriquecedoras e no caso foi enriquecedora a nível pessoal e emocional. Foi um Natal diferente, de coração apertado por estar longe das minhas outras filhas mas não deixou de ser especial, vivi o verdadeiro Natal dos hospitais. 


Os dias de internamento no Porto

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A Carminho foi transferida para o Porto no dia 20 de Dezembro. Estava estável mas ainda não estava fora de perigo. Como referi anteriormente o vírus sincicial respiratório é altamente mortal em bebés prematuros e o tratamento continuava. Tratamento com medicação, cinesiterapia respiratória e aspiração de secreções antes de cada mamada. 

Estava num quarto isolada e o tempo era passado a distraí-la com brincadeiras e nos cuidados de vida diários. A Carminho era uma bebe muito sossegada e raramente chorava, se a deixasse o dia inteiro deitada ela ficava mas o objetivo era estimula-la e dar muito mimo enquanto ali estivesse. Como estávamos sozinhas no quarto não havia contacto quase nenhum com as outras mães, apenas um bom dia ou boa tarde de passagem no elevador. 

As refeições eram feitas no refeitório que ficava dois ou três pisos abaixo( já não me recordo). É o único ponto negativo que aponto porque quando se aproximava a hora das refeições começava a entrar em stress a tentar adormecê-la para poder ir sem a deixar a chorar, coisa que acontecia quando deixava de me ver. Muitas vezes não conseguia,
bastava avisar a equipa de enfermagem e havia sempre alguém que ficava a dar um olhinho. Quantas vezes chegava ao quarto e estavam (algum enfermeiro ou auxiliar) ao lado da cama a cantar para ela ou a fazer brincadeiras para a distrair. Comia sempre em tempo recorde. Costumavam dizer-me que eu não mastigava a comida, engolia e era bem verdade. Não gostava de sobrecarregar ninguém e por isso as minhas ausências eram o mais curto que conseguia.

O que mais me custou neste internamento da Carminho era o facto dela já ter mais noção de tudo e manifestar mais a dor. Tinha quatro meses e meio e quando via um elemento da equipa de enfermagem a entrar no quarto já sabia que não era pelos melhores motivos, embora muitas vezes só fossem perguntar se estava tudo bem. Seguia-os religiosamente com o olhar o tempo todo e diziam na brincadeira que ela era uma cusca. 
O meu despertador tocava de três em três horas para pedir o leite e consequentemente ao enfermeiro que a viesse aspirar. Custavam-me horrores os gritos dela ao ser aspirada mas sabia que era para o bem dela. Sentia que também custava a qualquer pessoa que o fizesse. Via-lhes isso na cara e eram extremamente cuidadosos com ela. Mas o que me custava verdadeiramente era a medicação endovenosa. Não pela medicação em si mas pelo facto do cateter obstruir praticamente a cada administração e ter que ser puncionada novamente. Pesava pouco mais de dois quilos e há quatro meses que andava a ser puncionada por isso as veias dela eram miseráveis. Isto implicava que tivessem que picar várias vezes, em vários sítios, até encontrar uma veia permeável. Quando digo várias vezes eram geralmente quatro/cinco vezes (às vezes mais). Cheguei a comentar que lhes tirava o chapéu porque aquilo para mim nem eram veias, eram vasos capilares. Os gritos dela eram ensurdecedores e via o desespero na cara dos enfermeiros por lhe estarem a provocar aquele sofrimento, pediam-lhe desculpa  mas tinha que fazer o antibiótico até ao final e não havia outra forma. Lembro-me de na fase final do antibiótico ter que ser puncionada na cabeça, pouco acima da orelha. Foi de madrugada e levaram-na para a sala de tratamentos, quando regressou e vi chorei baba e ranho a noite toda. Cheguei a questionar-me muitas vezes se todo o sofrimento que ela passou desde que nasceu não deixaria sequelas a nível psicológico, traumas mas garantiram-me que não.




Faltavam quatro dias para o Natal e já sabia que não havia qualquer hipótese dela ter alta até lá. Tentei abstrair-me disso, esquecer que era Natal e encarar como uma época perfeitamente normal. Quando tivesse alta teríamos muitos mais motivos para comemorar.