Os seis dias da Carminho nos cuidados intensivos

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Foram seis os dias que a Carminho esteve nos cuidados intensivos no Pediátrico de Coimbra e foram também seis os dias que eu estive lado a lado com ela e consequentemente sem ver as irmãs. Durante cinco dias a Carminho esteve sedada (coma induzido), não reagia a nada e era manipulada para posicionamentos, higiene e tratamentos. 

Eu ficava com ela até à 1h, sensivelmente, depois ia (tentar) dormir e acordava religiosamente às 7h para poder tomar o pequeno-almoço bem cedo e entrar no serviço até às 8h. As horas que estava longe dela não ficava sossegada por medo que algo pudesse acontecer e eu não estivesse lá e por isso gostava de ficar ao lado dela durante o máximo de tempo possível. O dia era passado alternando entre o cadeirão e o estar de pé a fazer-lhe mimos, saía apenas para fazer as refeições principais. 

Não posso dizer que estes tenham sido os dias mais difíceis de todo o trajecto da Carminho porque não o foram. Ao fim do segundo dia os médicos começaram a dar um prognóstico mais positivo e eu estava confiante de que aquele pequeno Ser de apenas 2kg ia sair daquela prova de fogo vitoriosa. O facto de estar sedada também não me deixava muito nervosa. Como tinha que ser aspirada várias vezes ao dia e também puncionada algumas vezes, pensava que pelo menos assim ela não sofria. O que me custava mesmo era não poder fazer mais do que mimos, não poder dar-lhe colo. 

Ao contrário de quando ela esteve na neonatologia a relação com os pais das outras crianças não ia além do “bom dia” e “boa tarde” e sentia-me ali um bocadinho sozinha. Às vezes o facto de termos com quem conversar ajuda muito e ali não tinha mesmo com quem o fazer. Andava sozinha, fazia as refeições sozinha e passava o tempo com a Carminho no isolamento, o que também não me permitia estar com mais ninguém. 

O facto de estar longe das irmãs também me estava a perturbar muito. A Carlota estava com quatro meses e eu ainda só tinha conseguido passar praticamente 15 dias na íntegra em casa com ela e a Constança estava com 21 meses e praticamente privada da mãe há três e meio. Estava a ser muito difícil gerir tudo ao mesmo tempo e apesar de ver que a Carminho estava a estabilizar as minhas emoções estavam à flor da pele. Dava por mim a chorar várias vezes ao dia e por mais que tentasse controlar não conseguia. O stress de tudo aquilo foi tanto que no dia seguinte à transferência da Carminho para Coimbra fiquei sem leite. Até aquele dia tinha conseguido amamentar e extrair leite, naquele dia pedi a máquina para poder extrair leite para a Carminho e nem uma gota saiu. Nunca mais tive leite.

No quinto dia da Carminho em Coimbra o médico disse-me que iam retirar o ventilador e começar a retirar a sedação, que durante aquele dia ela ia acordar. Que boas notícias. E assim foi. Ao início da noite a Carminho estava desperta mas muito agitada, não parava de chorar um minuto. Não fui jantar, não a ia deixar ali assim. Fiquei ao lado dela a tentar acalma-la com as estratégias que tinha ao meu alcance. Não lhe podia dar colo por isso só lhe podia dar mimo, falar com ela e cantarolar. Nada resultava mas pelo menos eu estava ali e ela sabia que não estava sozinha. Por muitas vezes que a enfermeira do turno da noite me tivesse dito para eu ir descansar, não arredei o pé dali até ver que a Carminho tinha adormecido. Ela estava numa sala completamente fechada e sabia que se estivesse a chorar dificilmente a ouviam com a agitação do serviço. Deviam ser 3h quando a Carminho finalmente adormeceu por exaustão. Subi para o quarto mas não fui sossegada, só me vinha à imagem ela acordar e ficar sozinha a chorar sem a mãe lá ao lado. Dormi 3h e desci novamente. Já a Carminho estava acordada a chorar. 






Passadas umas horas entrou no isolamento o enfermeiro do turno da manhã. Não me lembro do nome nem da cara dele mas jamais me esquecerei de toda a arrogância e frieza. A Carminho continuava a chorar e eu estava em pé ao lado dela a fazer-lhe mimos na cara e a tentar aconchega-la como podia. Ouço algo do género, dito como um tom agressivo: Ó mãe não se ponha cá com essas coisas! Se está a chorar deixe chorar até adormecer. Ela é muito esperta e já percebeu que se chorar tem o que quer. Vá-se sentar se faz favor. 
Disse-lhe que não a ia deixar a chorar sem a fazer sentir-se acompanhada por mim e diz-me: Você com três filhas se vai para casa fazer isto às três não faz mais nada! É editá-las na cama, cobrir e deixar chorar até adormecer.
Lembro-me de me apetecer responder: e qual é o seu problema se não fizer mais nada da vida? Quem é você para vir obrigar-me a fazer isto ou aquilo? Sabe lá você o tempo que as minhas filhas já passaram sem a mãe e aquilo que já sofreram para eu ter a lata de as deixar a chorar sozinhas num berço. 
Respirei fundo e não respondi. Passado pouco tempo veio dar banho à Carminho. Dei-lhe banhos sem conta dentro da incubadora e estava mais do que familiarizada com isso, com toda uma manipulação de fios, sondas, e cateteres. Mas naquele dia, segundo ele, tudo o que eu fazia estava errado e era motivo de repreensão. Até no momento de pegar na minha filha fui repreendida porque não era assim que se pegava. E tudo isto com tom de voz rude e agressivo. 

Antes do almoço a médica veio dizer-me que a Carminho ia sair dos intensivos e como somos de Viana perguntou se preferíamos ser transferidas para mais perto. Respondi que sim mas que queria que a Carminho ficasse onde fosse melhor para ela e que se o melhor fosse ficar lá seria lá. Disse-me que iria transferi-la para o Porto, para o hospital onde nasceram. Fiquei feliz. Não me canso de dizer que tenho um carinho especial por aquele hospital e sabia que estaria nas mãos dos melhores. 
Era então necessário preparar a Carminho. Chegou novamente o enfermeiro e começou a aspira-la. A Carminho gritava e eu num tom de voz suave ia dizendo: pronto meu amor vai passar, tem calma. Ouço então: Se é para estar aqui com esse discurso saia por favor! Espere lá fora e deixe-me fazer o meu trabalho. 
Estava incrédula com aquele senhor. Respondi que não era necessário e que não falaria até ele terminar. Tinha uma revolta em mim que me dava vontade de perder a razão mas a Carminho já ia embora e não valia a pena. Fomos extremamente bem tratadas durante todo o tempo que lá estivemos e não ia ser ingrata a toda uma equipa por causa de um elemento.


Fui almoçar apressadamente e fui também ao quarto buscar as minhas coisas. Quando cheguei aos intensivos a Carminho já estava pronta para sair e pouco tempo depois chegou a médica que ia fazer a transferência. E saímos para mais uma viagem, desta vez até ao Porto à casa mãe da Carminho.