A transferência para o Hospital Pediátrico de Coimbra

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A Carminho tinha sido ventilada novamente, pela equipa de Coimbra, e estava pronta. O destino era a unidade de cuidados intensivos do Hospital Pediátrico de Coimbra. 

Saímos da neonatologia (médico, enfermeira, condutor da ambulância, eu e o meu marido), entramos no elevador e descemos até ao piso 0. A porta principal do hospital já estava fechada e tínhamos que sair pela urgência. Olhei para a incubadora. Estava ali a minha filha, tão pequenina, apenas com uma fralda, sem nada a cobrir a incubadora. Não que isto fosse o mais importante naquele momento mas à medida que nos aproximávamos da porta da urgência pensava na minha filha a atravessar o corredor da urgência apinhado de gente com os olhares curiosos postos nela. Tinha bem presente na memória os olhares das pessoas no dia anterior quando entramos na urgência, não eram olhares de maldade mas de curiosidade, e confesso que me incomodava um pouco. Chegamos à porta e mal se abriu a enfermeira, quase como se me tivesse lido os pensamentos, olhou para o corredor e depois para a incubadora, tirou o casaco e cobriu-a. Estava uma noite gelada. Confesso que naquele momento fiquei de lágrimas nos olhos. Que orgulho senti nesta classe profissional, em profissionais assim que tanto a dignificam. Atravessamos o corredor e quando atravessamos a porta de saída vi uma antiga colega de curso a correr na minha direcção e dar-me um abraço apertado que naquele momento era tudo o que eu precisava. Puseram a incubadora dentro da ambulância, despedi-me do meu marido e entrei para o banco da frente. Só pedia para que nada acontecesse até chegarmos ao hospital, que ela se aguentasse. Lá os recursos eram outros. 

O médico sentou-se mesmo atrás de mim e foi falando comigo. Explicou-me que dado o esforço respiratório a que esteve sujeita os pulmões dela tinham colapsado (atelectasia pulmonar) e daí a necessidade do ventilador. Disse o que eu já sabia, que a situação era grave.

Antes de chegarmos ao Porto a Carminho teve um acesso de tosse e tivemos que parar para lhe aspirarem secreções. O episódio repetiu-se mais duas vezes até chegarmos a Coimbra e confesso que a calma da equipa me deixou serena e não alarmei.

Chegamos a Coimbra por volta das 23h. Estava um frio de morrer ou não estivéssemos em dezembro. Tiraram a incubadora e mais uma vez a enfermeira tirou o casaco para cobrir a incubadora porque íamos entrar novamente pela urgência. Percorremos corredores e mais corredores, lembro-me de ter pensado que aquele hospital parecia um labirinto e ainda hoje penso o mesmo, e chegamos à unidade de cuidados intensivos. Pediram-me que aguardasse na sala de espera enquanto iam monitorizar a Carminho. Demoraram cerca de 1h até me chamarem. 

Os procedimentos eram os mesmos da neonatologia. Bata, lavagem e desinfeção das mãos e desta vez incluía também máscara e luvas. A Carminho estava no isolamento e eu tinha que me equipar com tudo para não prejudicar ainda mais o seu estado de saúde. Percorri o corredor acompanhada por uma enfermeira e quando entramos na unidade a Carminho estava sozinha numa sala enorme, toda vidrada, mesmo em frente ao balcão onde estão os médicos e enfermeiros. Entrei numa porta onde tinha um lavatório e um carrinho com batas descartáveis, máscaras e luvas. Tinha que me equipar e sempre que saía ia tudo para o lixo. Aí tinha uma porta directa para a sala da Carminho. Entrei e o impacto foi grande. Perdi a conta ao número de bombas de perfusão, monitores, sensores. Tudo em número muito maior do que quando esteve na neonatologia. Estava inchadissima. Parecia ter mais cinco quilos do que tinha na realidade. 




Fiquei ali com ela cerca de 1h a fazer-lhe mimos e a dizer-lhe o quanto era importante que não desistisse. Passado esse tempo a enfermeira voltou e pediu-me que fosse descansar. Tinham quartos para os pais no piso superior. Perguntei-lhe senão podia ficar ali no cadeirão mas ela convenceu-me a ir descansar dizendo-me que não ia ficar lá a fazer nada. Despedi-me e fui acompanhada por uma auxiliar. Já deviam ser aproximadamente 2h. Os corredores eram escuros e desertos e pensei que era um bocado assustador andar ali. Fui para o quarto e descansei o que pude. Tinha receio que acontecesse alguma coisa e ninguém me avisasse e tinha ainda mais receio de entrar no dia seguinte nos intensivos, não sabia o que podia encontrar. 

O estado da Carminho é muito crítico

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A neonatologia e a pediatra ficam no mesmo piso, uma de cada lado do corredor. A Carminho tinha acabado de entrar na neonatologia dentro de uma incubadora, acompanhada pelos profissionais de ambos os serviços. Só nos tinham dito que a tinham que ventilar com urgência e mais nada. Não tínhamos um diagnóstico, nem sabíamos o que se estava a passar. Ficamos os dois a chorar no corredor que separa os dois serviços. Eu tinha uma dor emocional que parece que me sufocava. Chorava e só conseguia repetir: a minha filha não merece estar a passar por isto! Não acredito que ela esteja a passar novamente por isto. Não acredito que estamos em risco de a perder depois de tanta luta!

Ao ver-me naquele estado a auxiliar da pediatria veio buscar-me e levou-me para a sala comum do serviço. Deu-me um chá. Entretanto vieram duas mães apoiarem-me, uma ex colega de profissão e outra mãe que eu não conhecia. Eu só dizia que não podia perder a minha filha, que não era justo para ela depois do que já tinha lutado. Repetia isto sistematicamente e elas faziam o melhor que podiam para me consolar. Não fiquei lá muito tempo porque eu queria ir para a porta da neonatologia e fui. 

Fora da neonatologia tem uns sofás. Na parte superior da porta tem um vidro e através desse vidro consegue-se ver o corredor e a outra porta. A outra porta também tem um vidro na parte superior e, embora não se visse muito bem, conseguia ver-se a movimentação dentro do serviço. Colei-me a esse vidro para tentar perceber o que se estava a passar. Entretanto já passava bastante da hora da troca de turno e as enfermeiras do turno da manhã saíram. Perguntei-lhes o que se estava a passar mas não queriam ser elas a dar-me esse tipo de informações. Apenas me disseram que era muito grave e que nos devíamos preparar para tudo. Disseram-nos para ter muita força e deram-me um abraço apertado. 

O meu primo e a esposa estavam na parte de dentro do serviço com as filhas mas não sabiam que a bebe que tinha entrado era a Carminho. Toda a movimentação em torno da Carminho era muito silenciosa e só algum tempo depois é que ouviram o nome dela e pensaram que podia ser ela. Vieram à porta ver se estávamos lá e disseram-nos que havia toda uma equipa de volta dela. Ficaram ali sentados connosco. 

Tinha passado pouco tempo desde que a Carminho tinha entrado na neonatologia e começou uma movimentação que me estava a deixar ainda mais em pânico. Eram profissionais atrás de profissionais, dos mais diversos serviços, a entrar e sair apressadamente do serviço e com ar apreensivo. Não consigo descrever o medo que senti. Em momentos anteriores tive medo de a perder mas aquele dia foi o dia em que estava mais convicta de que isso estava prestes a acontecer. A pediatra da neonatologia saiu para uma cesariana e disse-me de passagem que estava muito complicado para a ventilar. Percebi o porquê de todo aquele movimento de profissionais.

Cerca de 1h depois saiu a pediatra que a tinha avaliado de manhã. Perguntei-lhe o que se estava a passar. Pediu-me que aguardasse um pouco porque primeiro precisava de acabar de tratar de tudo e entretanto iria falar comigo. Percebi que a prioridade dela naquele momento era a Carminho e só tinha que aceitar. Voltou a entrar alguns minutos depois.  Continuavam a entrar e sair profissionais. Cerca de 1h depois a pediatra saiu e falou connosco. Explicou-nos que a Carminho tinha o vírus sincicial respiratório, o vírus mais temido pelos pais de prematuros dado a elevada taxa de mortalidade, e que a situação dela era muito delicada. Já estava ventilada e sedada (o chamado coma induzido). Perguntei-lhe se era mesmo para o Santa Maria que ela ia ser transferida e disse-me que sim. Agradeci-lhe por tudo o que fez e pela rapidez com que ela e a colega tinham agido. De seguida liguei para o Santa Maria. Precisava de saber se eu podia ficar lá de noite e de dia à beira da Carminho ou se à noite não deixavam ficar. Nesse caso teria de pensar numa estratégia. Não conheço muito em Lisboa por isso teria de procurar um sítio para dormir ao lado do hospital. 

A pessoa com quem falei era o director do serviço e garantiu-me que não iam receber nenhum bebe de Viana, estavam à espera de um menino Braga. A minha cabeça estava um caos. Mas então para onde ia a Carminho? 

Entretanto a enfermeira veio dizer-nos que podíamos ver a Carminho. Pedi-lhe que falasse com a médica por causa da situação da transferência enquanto nos dirigíamos para a incubadora. A menina que ainda há poucas horas estava no meu colo de olhos fixos nos meus estava agora sem reação, com um ventilador a respirar por ela. Não se aguenta ver uma filha assim. É demasiado para uma mãe. 

Uns vinte minutos depois chegou a equipa que vinha buscar a Carminho. Perguntei para onde íamos e disseram-me que íamos para Coimbra. Explicaram que no primeiro contacto da pediatria não tinham vagas mas que entretanto conseguiram transferir um menino e ligaram a dizer que afinal podiam receber a Carminho. Fiquei tão feliz! Coimbra era bem mais perto do que Lisboa e não me sentia tão longe das minhas filhas. Entretanto avaliou a Carminho e pediu-me que saísse um pouco. O tamanho do ventilador não era o adequado para ela e iria ter que o tirar e ventilar novamente. Mais um procedimento evasivo. Aquele pesadelo parecia não ter fim.