Neonatologia | O aleitamento materno e a prematuridade

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A reação à amamentação é muito diferente de mulher para mulher. Conheço mulheres que adoraram amamentar e outras que nunca gostaram. Apesar de haver um forte incentivo à amamentação, por todos os benefícios que esta traz para o bebé, e uma forte pressão social, considero legítimo gostar ou não de amamentar, independentemente do motivo, e decidir se se quer ou não amamentar. Concordo com toda a campanha que fazem em prol do aleitamento materno, só não concordo quando falam num aumento do vínculo entre a mãe e o bebé. Não acho que seja por uma mãe amamentar que terá um vínculo maior e muito menos que ame mais o seu filho ou que seja melhor mãe do que uma mãe que não amamente.

Eu faço parte do leque de mães que não gostaram de amamentar. Nunca tive infecções, gretas, tensão mamaria, apenas não gostava. Apesar disso amamentei a Constança até aos 12 meses e só parei por indicação médica no dia em que soube que estava grávida. Durante esses 12 meses tinha imenso leite, tanto leite que conseguia amamentar e ainda conseguia extrair uma média de 750ml de leite por dia. Congelei litros e litros de leite que foi utilizado quando fui trabalhar e à posteriori quando tive que parar de amamentar. Até aos 17 meses todo o leite que a Constança bebeu foi leite materno. Isto porque apesar de eu não gostar de todo de amamentar, de ser um sacrifico fazê-lo e um sacrifício ainda maior extrair leite, sentia que era meu dever fazê-lo e propus-me a continuar já que era mais benéfico para ela. 


Quando as gêmeas nasceram decidi que o caminho seria o mesmo, amamentar até que tivesse leite. Sendo prematuras não pude amamenta-las logo desde o nascimento, contudo tive que começar logo no primeiro dia a extrair leite. Primeiro para estimular a produção de leite e depois para lhes ser administrado assim que pudessem começar a alimentar-se com o meu leite. Como na primeira gestação tive imenso leite pensei que na segunda fosse igual. Só que não! O facto das minhas filhas não mamarem não havia o mesmo estímulo para produzir. É muito diferente o estímulo dado pela sucção do bebé e por uma máquina de extrair. Se na primeira gestação conseguia tirar 250ml em 5 minutos, na segunda gestação precisava de espremer (literalmente) gota a gota durante mais de 30 minutos para tirar 50/100ml e o processo era doloroso. Como sabia da extrema importância que o meu leite tinha para as minhas filhas usei todas as estratégias possíveis e imaginárias para conseguir ter mais leite. Desde tomar medicação, a beber cervejas sem álcool, a tirar leite enquanto olhava para as fotografias das minhas filhas, a massajar e espremer, tudo o que estava ao meu alcance e me era aconselhado pelos enfermeiros era válido mas com pouco sucesso, o meu corpo não respondia como eu desejava. O factor stress e o cansaço eram antídotos potentes. 


Conseguir deixar leite para as duas bebés para 24h começou a ser quase uma obsessão para mim. Numa fase inicial era fácil atingir esse objetivo visto que elas bebiam uma média de 1ml de 6/6h. Mas à medida que foram aumentado a quantidade e a frequência foi-se tornando mais complicado. Em casa nunca consegui tirar mais de 100ml (na melhor das hipóteses) e embora as enfermeiras me dissessem que era para tirar de 3/3h eu tentava quase de meia em meia hora para conseguir o máximo de leite. Assim que chegava ao hospital e via as minhas filhas, depois de passar algum tempo com elas ia até à sala de extração de leite e tirava um ou dois biberões cheios num estalar de dedos. É incrível como o nosso corpo e a nossa mente são fantásticos.

A extração de leite num hospital também não é de todo uma experiência muito simpática. Há uma salinha pequena com três máquinas e estão três mulheres frente a frente numa mesa sem privacidade a tentar tirar leite. Para amenizar as coisas acabava também por ser a sala das partilhas e das dúvidas. Era ali que, de mamas ao léu, conversávamos e trocávamos ideias, informações e que muitas vezes nos consolávamos e dávamos apoio mútuo umas às outras. 

Quando a Carlota começou a mamar, às 4 semanas, notei imediatamente um aumento na produção de leite mas mesmo assim nada que se comparasse à quantidade de leite que tive na primeira gestação. Consegui amamenta-las com leite materno até aos quatro meses e meio, altura em que fiquei sem leite, mas não em exclusivo. A partir dos dois meses houve necessidade da Carlota começar a fazer leite adaptado (especial para prematuros) intercalado com o leite materno para que eu conseguisse tirar leite suficiente para a Carminho que naquela fase precisava mais do leite materno. Quando a Carminho teve alta começou também a fazer leite adaptado intervalando com o leite materno. Não consegui amamentar durante o tempo que desejava mas fiz tudo o que estava ao meu alcance para conseguir ir o mais longe possível. 

Neonatologia | Evolução e sequelas da prematuridade

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Quando as minhas filhas nasceram e as vi pela primeira vez tive uma necessidade urgente de saber como seria a evolução delas a partir dali. Precisava de ver respondidas perguntas simples: qual o ganho de peso (norma) diário? Quais as sequelas que poderão ficar para a vida? Quanto tempo em média vão ficar internadas? Qual o risco de as podermos perder? Irão ficar com um aspecto normal? (O aspecto de um bebé prematuro é muito diferente do aspecto de um bebé normal como expliquei no post “O Impacto de as ver pela primeira vez”).

Como seria de esperar os médicos não nos dão estas respostas. Em medicina as coisas não são lineares, a evolução é muito diferente de bebé para bebé e as pedras que poderiam surgir pelo caminho não podiam ser expectáveis. Daí a resposta ser sempre: cada minuto conta. É um dia de cada vez.

Na minha insatisfação face a não obter as respostas que desejava procurava exaustivamente no Google testemunhos de pais que tivessem vivido esta realidade. As palavras chave eram “prematuros de baixo peso”, “evolução de bebés prematuros”, “sequelas em bebés prematuros”, “tempo de internamento de um bebé com 400gr”,... 
As respostas eram vagas. Muitas delas vindas de meios de comunicação social que davam notícias de um bebé que sobreviveu com 400gr e esteve X tempo internado. Mas o que eu queria e precisava de ler eram relatos de pais que viveram na primeira pessoa aquela experiência. Nas paredes da neonatologia encontrávamos várias fotografias de bebés que nasceram lá, em que tinha a fotografia do bebé e o peso à nascença e ao lado uma fotografia do mesmo bebé com cerca de 12 meses e o peso nessa altura. Era terapêutico para nós ver essas fotografias porque percebíamos que a partir de uma dada altura conseguem recuperar o peso para a idade, conseguem ter feições “normais” e nem se percebe que eram bebés prematuros. Continuávamos era sem ter relatos de sequelas, de doenças crônicas.

Como já referi, a evolução de um bebé prematuro não é linear, não há uma evolução padrão mas sinto necessidade de escrever sobre a evolução das minhas filhas porque sei que tal como eu há mais pais a precisar de relatos destes. 

A Carlota nasceu com 1125gr. Na primeira semana perdeu peso e chegou aos 980gr. A partir daí o ganho de peso era de cerca de 30/40gr/dia. Só necessitou de ventilação mecânica nos dois primeiros dias de vida. A partir daí ficou apenas com oxigénio que manteve até às 7 semanas. Começou a ingerir o meu leite, 1ml de 6/6h, por sonda ao fim de dois dias e sempre tolerou muito bem, foi aumentando gradualmente. Nunca teve nenhuma infecção durante todo o internamento e ao fim de duas semanas e meia saiu dos intensivos e passou para os intermédios (apanhei um susto de morte quando cheguei à incubadora e a vi vazia! Veio a enfermeira a correr aflita explicar-me que tinha ido para os intermédios). Começou a beber leite pelo biberão e a mamar na mama ao fim de 4 semanas mas para não se cansar muito (perdem peso e baixam as saturações de oxigénio quando mamam) fazia metade por biberão ou mama e outra metade por sonda. Saiu da incubadora quando faltava uma semana para fazer dois meses. Teve sempre um progresso surpreendente e teve alta ao fim de dois meses quando já mamava perfeitamente bem por mama ou biberão e atingiu os 1750gr (é o peso mínimo com que geralmente dão alta).


A Carminho encontrou mais percalços no caminho mas dentro da sua restrição grave de crescimento também teve uma evolução muito boa. Nasceu com 475gr e na primeira semana baixou até aos 402gr. Necessitou de ventilação mecânica durante 5 dias, a partir daí ficou com ventilação não invasiva durante duas semanas e depois com oxigénio até aos três meses. O ganho de peso dela oscilava entre os 30/50gr/dia mas necessitava de um fortificante de leite materno para a fazer engordar mais rapidamente. Num dia em que não lhe dessem o fortificante o peso estagnava. Começou a ingerir leite materno por sonda ao fim de 5 dias, 0,5ml de 6/6h, e não tolerava por isso teve que parar e só reiniciar uns dias depois. O aumento foi muito lento porque não digeria o leite embora a quantidade fosse muito baixa. Só começou a beber pelo biberão com cerca de dois meses e em pouca quantidade. Fez várias transfusões de sangue por anemia, que mantém. Uma semana depois de nascer verificou-se que tinha um problema ósseo, osteopenia, que consiste em ter os ossos mais frágeis com maior risco de fractura. E no mesmo dia verificou-se que tinha também um problema no fígado, colestase metabólica. Iniciou uma série de medicação para estabilizar ambos. Ainda permanecem mas estão ambos controlados. Tem também uma doença cardíaca crônica (comunicação inter auricular) e uma doença pulmonar crônica (displasia broncopulmonar). Ambas muito bem vigiadas. Teve uma infeção gravíssima ao fim de 14 dias, uma septicemia. Passou dos intensivos para os intermédios ao fim de quase dois meses e dois dias depois foi transferida para Viana do Castelo. Saiu da incubadora ao fim de três meses e teve alta ao fim de três meses e meio com 1700gr. As ecografias cerebrais eram as que mais me assustavam mas contra todas as expectativas não ficou com qualquer sequela a nível cerebral. Tem estigmatismo e por isso usa óculos (ou eu tente que os use porque ela passa a vida a tirar).  


Apesar de tudo sou grata porque a Carlota tem apenas otite serosa, que lhe provoca em média uma otite por mês, e a Carminho apesar das suas doenças crónicas é muito bem acompanhada e estão controladas. 

Neonatologia | O dia a dia na neonatologia

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É um clichê dizer que só quem passa por uma neonatologia é que consegue imaginar o que se sente mas não há outra forma de o dizer. 


Ter um filho na neonatologia é ansiar pela manhã seguinte para voarmos até ao hospital. É ficarmos irritados por apanharmos trânsito porque nos está a roubar tempo junto dos nossos filhos. É chegar ao hospital e percorrer os corredores ao passo mais rápido que conseguimos até chegar finalmente à porta que diz “Neonatologia”. Aí o ritmo cardíaco aumenta e tentamos ser rapidíssimos a guardar os nossos pertences no cacifo, lavar as mãos, vestir a bata, pegar nos biberões do pouco leite que conseguimos extrair em casa e percorrer a uma velocidade super sônica o corredor até à porta dos cuidados intensivos neonatais. Entrando essa porta o primeiro olhar é na direção das incubadoras dos nossos filhos. Estão lá! Ufa, que bom! Respiramos de alívio. Pousamos os biberões de leite e vamos rapidamente até às incubadoras. Examinamos ao pormenor os nossos filhos para confirmarmos a olho nu que estão “bem”. E o olhar seguinte vai para o monitor que está em cima da incubadora para ver o peso.

Ter um filho na neonatologia é vivermos  obcecados com o peso, vibrarmos com os poucos gramas que ganham diariamente e desiludirmo-nos se houver perda de peso, mesmo que sejam apenas 2 gramas. É vivermos obcecados por saber se fizeram xixis e cocos porque se torna um elemento vital para eles. É ficarmos felizes por cada gota de leite que conseguem tolerar a mais. É vivermos focados em conseguir extrair o máximo de leite possível, não importa o que tenhamos que fazer para o conseguir mas sentimo-nos na obrigação de conseguir alimenta-los apenas com o nosso leite. 

Ter um filho numa neonatologia é habituarmo-nos a vê-los com cateteres, sondas, sensores e muitos monitores à volta deles. É habituarmo-nos a ouvir os alarmes dos monitores sem ficarmos alarmados e irmos para casa com o “pi pi pi” a ecoar nos ouvidos. É sentirmos uma dor sufocante de cada vez que vemos os nossos bebés a sofrer com procedimentos médicos. É assistirmos a picadas e mais picadas. É desejarmos a todos os minutos trocar de posição com eles. É ficarmos mestres em mudar fraldas e dar banhos dentro de uma incubadora sem molhar todos os adereços (e demorar uma eternidade de tempo a fazê-lo). 

Ter um filho numa neonatologia é ansiar pelo momento de fazer o canguru. É passarmos ali 3 ou 4h a namoramos os nossos bebés. É querermos ficar ali a fazer festinhas sem pensar que teremos de os devolver às incubadoras. É cantarmos vezes sem conta a mesma musica aos seus ouvidos pequeninos. É ter a preocupação de escolher uma roupa suficientemente larga que nos permita colocá-los em canguru. É ansiar por falar com os médicos mas ao mesmo tempo estarrecer de medo das notícias daquele dia. É termos um dia estável e no dia seguinte um dia mau. É desejar que o tempo voe para os trazer para casa mas saber que os progressos são muito lentos. É desesperar a cada dia que passa por demorar a chegar o dia de dizer adeus à neonatologia. E quando esse dia chega é chorar de nostalgia por deixarmos aquela família que construímos.

Ter um filho numa neonatologia é formar uma nova família, a família da neonatologia, com quem (apesar de todas as circunstâncias) fomos muito felizes. É ver nos profissionais de saúde e nos outros pais os nossos maiores aliados. São eles que nos percebem melhor do que ninguém. É com eles que passamos a maior parte dos nossos dias. É com eles que passamos a almoçar e lanchar. É com eles que desabafamos. Que celebramos as boas notícias e choramos quando recebemos as más. É vibrar também com os progressos dos filhos deles e ficarmos sinceramente tristes quando pioram. 

Ter um filho numa neonatologia é regressar a casa de colo e barriga vazios. É regressar a casa com o coração apertado e de lágrimas nos olhos porque sentimos que os estamos a abandonar no hospital. É regressar a casa todos os dias com medo do que possa acontecer na nossa ausência. É congelar sempre que o telefone toca. É aprender a viver com medo. 

Ter um filho numa neonatologia é sentirmo-nos culpados e que poderíamos ter evitado aquela situação. É viver a pensar nos “Se’s”. É devorarmos vezes sem conta toda a informação distribuída pelo serviço. É aprendermos a viver um minuto de cada vez. É aprendermos a desvalorizar completamente problemas fúteis. É termos a lágrima fácil. É chorar de alegria e de tristeza. É celebrarmos pequenas conquistas como grandes feitos.

A minha Constança

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Era uma vez uma princesa, a primeira princesa dos papás. 

Sou a Constança, uma menina muito planeada e muito desejada. A mamã viveu uma gravidez muito feliz, sem nenhum desconforto nem complicações. O único susto que dei aos meus papás foi às 7 semanas, a minha mamã teve uma dor muito forte e no hospital suspeitaram de gravidez ectópica. Queriam que a mamã abortasse mas ela pediu muito que reavaliassem novamente e dois dias depois lá confirmaram que afinal estava tudo bem. A partir daí correu tudo lindamente. Tão lindamente que às 10 semanas fiz uma viagem na barriga da mamã de quase 20h de voo e portei-me muito bem.


A mamã adorava ter-me na barriga, era uma grávida muito orgulhosa e vaidosa. Trabalhou comigo na barriga até às 36 semanas mas depois eu castiguei-a para ela parar, deixei de engordar e a médica mandou-nos fazer repouso absoluto. É muito bem feita, eu já estava cansada da vida agitada que ela levava! Onde é que já se viu acordar-me às 7h e trabalhar 11h seguidas? Não parava quieta.

Os meus papás estavam ansiosos por me conhecer mas eu fiz-me de difícil. Só nasci às 41 semanas de parto induzido. A mamã diz a toda a gente que foi um parto muito fácil, que não sofreu nada. Os meus papás choraram muito de emoção quando me viram. 

Não fui uma bebé fácil mas os meus papás eram resistentes. Acordava de hora em hora para mamar e a partir do primeiro mês de vida fiquei uma chorona. Ou a mamã me dava colo ou chorava o dia todo e dormir só mesmo à noite. Mesmo assim a mamã gostava muito de mim, tanto que decidiu que afinal eu já não ia ser filha única como tinham planeado. 

Quando eu tinha 16 meses nasceram as minhas manas e os meus papás passaram por um período muito difícil. Tinham as manas no hospital e eu em casa. A mamã sentia-se muito culpada por não poder estar mais tempo comigo e por me ter roubado a atenção exclusiva. Eu ainda era muito bebé, precisava muito dos meus papás e tive que crescer mais rápido do que o previsto. Isso deixava a mamã triste. Mas eu aprendi rapidamente a gostar das minhas manas e a ajudar a mamã a cuidar delas. Mesmo pequenina sabia partilhar a atenção e não tive muitos ciúmes. E gosto muito das minhas manas. Às vezes também me zango com elas mas dizem que os irmãos são mesmo assim. 

Sempre fui uma menina de birras, birras daquelas de deixar os papás de cabelos em pé. Agora estou a melhorar muito mas de vez em quando ainda faço uma. A mamã costuma dizer que eu tenho tanto de doce como de birrenta. Que sou muito meiguinha mas que quando estou num dia “não” lhe apetece fugir. Oh mamã dizem que estou na adolescência do bebé por isso é normal! Mas sou uma menina fui feliz, muito atenta a tudo, muito espontânea e inteligente. Falo pelos cotovelos.





Hoje faço 3 anos e estou muito feliz! Acordei a cantar os parabéns a mim própria, eu adoro fazer anos. A mamã fica um bocadinho triste porque diz que estou a crescer rápido demais! Habitua-te mamã que não tarda nada eu e as manas estamos a entrar na escola primária (isto para não dizer que estamos a sair à noite!).

Neonatologia | A revolta contra Deus

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Durante a gravidez, mediante as complicações que foram surgindo, foram muitas as vezes em que rezei. Morria de medo que algo pudesse correr mal e rezava imenso numa tentativa desesperada de pedir auxílio. Nunca tinha tido necessidade de rezar para pedir ajuda, apenas o fazia por gosto mas nessa fase tive mesmo essa necessidade.

Sou católica praticante, catequista há 20 anos, e sempre me agarrei à fé. Depois das gémeas nascerem todas as pessoas que me enviavam mensagens ou telefonavam para saber notícias das meninas se despediam com algo do género: tens que ter fé; muita fé; tem fé que vai correr tudo bem; Deus é grande. Não respondia para não parecer ingrata. Só que aconteceu precisamente o oposto. Perdi a fé por completo. Revoltei-me completamente contra Deus. Questionei muita coisa. Não conseguia aceitar que O Deus em quem eu sempre confiei e que sempre servi tivesse a castigar as minhas filhas daquela forma. Não conseguia perceber o porquê de dois seres tão inofensivos que nunca fizeram mal a ninguém tivessem que estar a sofrer daquela forma. Não fazia sentido. A minha cabeça só pensava que se Deus realmente existisse não podia permitir que dois bebés tivessem que passar por aquilo. Se nos quisesse pôr à prova ou dar uma lição de vida então que o sofrimento físico fosse atribuído a nós e não a quem não merecia. E mesmo que nos estivesse a castigar a nós não conseguia perceber o porquê. 

Ao longo de todo o internamento todos os meus familiares e alguns amigos fizeram inúmeras promessas e rezaram muito em prol da recuperação das meninas e não há um “obrigada” que seja suficientemente justo para lhes agradecer. Enquanto isso eu não consegui fazer nenhuma promessa, nem rezar uma única vez tal era a minha revolta. Se Ele tinha permitido que elas estivessem naquela situação tinha obrigação de as ajudar sem eu ter que pedir. Estava mesmo zangada com Deus. Via as minhas filhas a sofrerem diariamente e a lutarem sozinhas com quantas forças tinham para sobreviver, a única ajuda que tinham era dos médicos e enfermeiros que lutaram sempre com elas. Ao longo deste percurso ainda perdi uma amiga muito querida , a melhor pessoa que já conheci, após uma longa jornada de luta. Dedicou-se a vida toda à Igreja. E mais acentuou a minha revolta. Se Deus existisse porquê que a tinha feito carregar uma cruz tão pesada para depois a levar? 

Diversas vezes me pesou a consciência por não conseguir rezar pelas minhas filhas e várias foram as vezes em que tentei fazê-lo mas quando começava sentia falsidade da minha parte porque não estava a fazê-lo com fé e convicção, estava apenas a fazê-lo porque achava mal não rezar por elas e então desistia. Preferia falar-lhes ou cantar-lhes numa demonstração de amor. Afinal é o amor que cura tudo, não é? 

Quando tudo isto terminou e finalmente tive as minhas filhas em casa não consegui retomar logo a catequese. Tive um afastamento de meses porque não conseguia fazer algo que me suscitava dúvidas. Fui fazendo uma introspecção e recuperando a minha fé. Neste momento já fiz as pazes com Deus. Não foi de um dia para o outro e ainda não está a 100% mas estou no bom caminho. 


Neonatologia | Nem todos os finais são felizes

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Infelizmente nem todos os finais são felizes na neonatologia. Ao longo dos três meses e meio em que estive lá não presenciamos só casos de sucesso, presenciamos também perdas. Foram três os bebés de quem nos despedimos. Perdas essas irreparáveis para os pais mas também muito sentidas pelos outros pais. 

O primeiro bebé que “vimos” partir foi o primeiro vizinho da Carminho e foi precisamente dois dias depois das nossas filhas nascerem. Os pais, muito simpáticos, tinham tentado consolar-me no dia anterior, quando vi as gémeas pela primeira vez e estava arrasada, e disseram-me que o filho já estava lá há um mês. Era um bebé bem grande em relação às minhas e não sei em concreto o que aconteceu. Sei que naquela manhã os médicos estavam reunidos à volta dele e a dada altura pediram a todos os pais que saíssem (já referi anteriormente que tínhamos que sair sempre que fossem fazer algum procedimento mais delicado). Como eu ainda estava internada subi até ao quarto. Mais tarde quando regressei o bebé não estava lá. Deduzi o que poderia ter acontecido mas não podíamos perguntar nada acerca dos outros bebés por uma questão de sigilo e por isso só mais tarde tive a confirmação através de outra mãe que estava lá quando os pais receberam a notícia. Confesso que aquilo me abalou muito. Por pensar nos pais que estiveram um mês com o filho e ao fim desse tempo a aumentarem um vínculo afetivo ficaram sem ele. Caramba! Como é que se lida com isto? Como é que se ultrapassa uma dor destas? E por perceber que um mês depois isso ainda podia acontecer, nunca estavam fora de perigo. 


O segundo bebé que “perdemos” tinha nascido no mesmo dia das nossas filhas. Partiu 10 dias depois de nascer. Naquele dia achamos estranho não termos visto lá os pais, estávamos diariamente com eles. Quando fui extrair leite outra mãe perguntou-me se eu sabia o que tinha acontecido porque de manhã cedo viu os pais lá a chorarem e o bebé já não estava lá. Não fazia a mínima ideia mas tudo apontava para o pior. E confirmamos mais tarde. Fiquei incrédula. Nem queria acreditar. Senti essa perda de uma forma muito intensa. Tinha nascido no mesmo dia das gêmeas e na minha cabeça ao fim daquele tempo já nada lhes ia acontecer mas ao ver o que aconteceu ao bebé percebi que afinal ainda tudo podia acontecer. Como convivíamos com os pais senti muito a dor deles, verdadeiramente. Pode parecer ridículo mas era como se aquela perda também fosse um pouco nossa. Andei com um nó na garganta vários dias, mesmo sentida pelo que aconteceu.


A terceira perda foi uma menina. Uma bebé de termo que depois de nascer estava no internamento com a mãe. Na primeira noite a mãe apercebeu-se de que havia algo de errado com a respiração dela e alertou as enfermeiras. No dia seguinte desceu para a neonatologia. Estava na incubadora atrás da Carminho. Não me recordo quantos dias ao certo esteve lá mas durante esse tempo a mãe dizia-me que lhe faziam imensos exames e que ainda não sabiam ao certo o diagnóstico. Poucos dias depois cruzei-me com os pais à saída do elevador, eles a sair e eu a chegar, completamente desolados. Não houve tempo para perguntar nada mas quando entrei na neonatologia e vi a incubadora vazia percebi o que tinha acontecido.


Era estranho porque os pais (evidentemente) desapareciam, a incubadora era logo substituída por outra pronta a receber outro bebé e entre profissionais não se ouvia falar mais do assunto, dando a sensação de que nada tinha acontecido. Mas entre os pais não era bem assim. O medo e as dúvidas aumentavam e toda a segurança que pudesse ter era abalada naqueles dias. 


Durante o tempo que passamos na neonatologia os outros pais são as pessoas com quem passamos mais tempo, são os que estão lá quando recebemos boas e más notícias e é com eles que desabafamos numa primeira fase. É com eles que almoçamos, que lanchamos à pressa na sala dos pais. Criam-se laços, uma ligação especial entre todos. Estamos todos no mesmo barco, a viver exactamente a mesma experiência e ninguém percebe melhor o que estamos a sentir do que eles. É o clichê “só quem passa pela neonatologia sabe o que se sente”. Torcemos pelos outros bebés como torcemos pelos nossos. Interessámo-nos verdadeiramente por todos, pelas conquistas diárias. E inevitavelmente sofremos a dor dos outros assim como vibramos com as alegrias.


Neonatologia | Septicemia: o dia em que pensei que não voltaria a ver a Carminho com vida

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Só houve quatro dias na curta vida da Carminho em que eu achei que poderia não a voltar a ver com vida. O primeiro foi no dia do parto, como já referi no post em que falo do parto, em que achei realmente que seria muito difícil uma bebé de tão baixo peso com 29 semanas sobreviver. O segundo foi no dia 14 de Agosto, 13 dias depois dela nascer, o terceiro e quarto foram nos dias 15 e 16 de Dezembro (falarei sobre isso noutro post mais tarde).

Depois de ver as minhas filhas na neonatologia, apesar do medo permanente que houvesse uma reviravolta e dos médicos e enfermeiros estarem constantemente a alertar que o estado delas ainda era muito crítico e que era minuto a minuto, eu senti sinceramente que elas iam vencer. Custava-me a acreditar que depois de sobreviverem ao primeiro dia pudessem não viver (odeio a palavra morrer!). Sabíamos que isso podia acontecer, era-nos dito sempre que a qualquer momento poderia haver complicações mas eu não acreditava. Estar com elas, vê-las, tocar nelas e ver os dias a passar e elas a não darem parte fraca dava-me mesmo coragem e percebia que elas nasceram para vencer. Às vezes até me sentia mal porque achava que com tanto optimismo não estava a atribuir a real gravidade do estado delas mas sentia mesmo que ia correr tudo bem. 

No dia 14 de Agosto elas tinham 13 dias de vida e, tal como em todos os outros dias, chegamos ao hospital e percorremos os corredores até à neonatologia a uma velocidade super sônica. Eu entrei primeiro na unidade de cuidados intensivos enquanto o pai ficou a lavar as mãos. Olhei para a incubadora da Carlota (era a primeira no corredor) e depois para a da Carminho. Quando olhei para a Carminho fiquei sem chão. Estava novamente com o ventilador, que tinha retirado uns dias antes e tinha sido uma grande conquista; parecia ter o triplo do peso de tão edemaciada (inchada) que estava; muito pálida e completamente prostrada (não reagia a nada, nem se mexia e ela era muito mexida). Percebi que alguma coisa tinha mudado e que o estado dela tinha agravado bastante desde o dia anterior.  Mesmo antes de falar com o médico e a enfermeira comecei a chorar. O pai chegou e perguntou-me o que se passava. Expliquei-lhe o que pensava. Logo a seguir veio a enfermeira e disse exactamente estas palavras que até hoje não esqueço: -Tudo bem papás? A Carminho não está nada bem. Fez febre, várias bradicardias severas e bradipneia desde o início da manhã até agora. Já iniciou antibiótico porque suspeitamos de septicemia e enquanto aguardamos o resultado temos que actuar com o antibiótico para lutar contra o tempo.




Septicemia?! Naquele momento todo o meu optimismo e esperança foram por água abaixo. A septicemia é altamente fatal. É uma infeção em que os agentes infecciosos penetram na corrente sanguínea e são assim transportados a vários locais do corpo,  uma infeção generalizada. Sabia que era gravíssimo. Como é que uma bebé de 400 e poucos gramas ia conseguir vencer uma septicemia? 

Já ouvi relatos de pais que dizem que lhes foi pedido para não chorar junto às incubadoras porque os bebés sentem tudo. A nós nunca nos foi dito isso. Acho que os enfermeiros da neonatologia já estão habituados a verem os pais chorarem junto das incubadoras. Eu própria já tinha chorado muito. Mesmo assim sentia-me a sufocar ali e saí para o corredor. Chorei tudo o que tinha para chorar durante um longo tempo. Tive os olhares, sorrisos e abraços de solidariedade de outros pais e quando já não tinha mais nada para chorar entrei e colei-me à incubadora da Carminho. Cantei-lhe vezes sem conta a música da Carolina Deslandes “A vida toda”. As minhas filhas ouviram essa música centenas de vezes por dia enquanto estiveram na neonatologia, é a música delas. Ainda hoje choro quando a ouço e elas acalmam quando a ouvem. Naquele dia a letra foi alterada por mim para aquilo que eu lhe queria dizer e pedir naquele momento. Não sabia se ela percebia mas queria que soubesse que precisávamos que ela vencesse a maldita septicemia. Que era muito amada e querida para nós. Tinha que vencer. Não conseguíamos imaginar o que seria de nós se assim não fosse. 

Elas estiveram muitas vezes na corda bamba durante a gravidez mas há uma diferença enorme entre haver esse risco enquanto estão na barriga e vê-las a sofrer cá fora. Assim como perdê-las enquanto estão na barriga e perdê-las quando já há um rosto, um cheiro, toque. É um vínculo muito mais intenso. Não desvalorizando nunca uma perda de um filho enquanto está na barriga. Passei por semanas de verdadeiro horror com esse medo e sei bem o quanto custa só pelo medo.

Enquanto estivemos lá não me lembro de ver a Carminho a mexer-se minimamente. Saímos do hospital ao início da noite e a enfermeira disse para ligarmos sempre que quiséssemos para saber como ela estava mas que era realmente grave. Sinceramente deixei o hospital com a sensação de que não a voltaria a ver com vida. Ela estava mesmo debilitada. Estava aterrorizada. 

Mais uma vez fizemos a viagem até casa sem falar. Tinha um nó gigante na garganta (quase como o que tenho agora ao relembrar aquele dia). Cada vez que um dos nossos telemóveis tocava era o pânico. Podia ser a notícia que não queríamos ouvir. Liguei de duas em duas horas para o hospital. Continuava com o mesmo estado. Bradicardias, prostração, bradipneia.


No dia seguinte manteve o mesmo estado e quando veio o resultado das análises confirmou-se que era septicemia e que estava bem medicada. O nosso medo mantinha-se. Dois dias depois começou a melhorar significativamente. A nossa guerreira estava a ultrapassar mais esta batalha. A força dela era uma coisa impressionante. Nem meio quilo de gente e uma vontade de viver desmedida.