Só houve quatro dias na curta vida da Carminho em que eu achei que poderia não a voltar a ver com vida. O primeiro foi no dia do parto, como já referi no post em que falo do parto, em que achei realmente que seria muito difícil uma bebé de tão baixo peso com 29 semanas sobreviver. O segundo foi no dia 14 de Agosto, 13 dias depois dela nascer, o terceiro e quarto foram nos dias 15 e 16 de Dezembro (falarei sobre isso noutro post mais tarde).
Depois de ver as minhas filhas na neonatologia, apesar do medo permanente que houvesse uma reviravolta e dos médicos e enfermeiros estarem constantemente a alertar que o estado delas ainda era muito crítico e que era minuto a minuto, eu senti sinceramente que elas iam vencer. Custava-me a acreditar que depois de sobreviverem ao primeiro dia pudessem não viver (odeio a palavra morrer!). Sabíamos que isso podia acontecer, era-nos dito sempre que a qualquer momento poderia haver complicações mas eu não acreditava. Estar com elas, vê-las, tocar nelas e ver os dias a passar e elas a não darem parte fraca dava-me mesmo coragem e percebia que elas nasceram para vencer. Às vezes até me sentia mal porque achava que com tanto optimismo não estava a atribuir a real gravidade do estado delas mas sentia mesmo que ia correr tudo bem.
No dia 14 de Agosto elas tinham 13 dias de vida e, tal como em todos os outros dias, chegamos ao hospital e percorremos os corredores até à neonatologia a uma velocidade super sônica. Eu entrei primeiro na unidade de cuidados intensivos enquanto o pai ficou a lavar as mãos. Olhei para a incubadora da Carlota (era a primeira no corredor) e depois para a da Carminho. Quando olhei para a Carminho fiquei sem chão. Estava novamente com o ventilador, que tinha retirado uns dias antes e tinha sido uma grande conquista; parecia ter o triplo do peso de tão edemaciada (inchada) que estava; muito pálida e completamente prostrada (não reagia a nada, nem se mexia e ela era muito mexida). Percebi que alguma coisa tinha mudado e que o estado dela tinha agravado bastante desde o dia anterior. Mesmo antes de falar com o médico e a enfermeira comecei a chorar. O pai chegou e perguntou-me o que se passava. Expliquei-lhe o que pensava. Logo a seguir veio a enfermeira e disse exactamente estas palavras que até hoje não esqueço: -Tudo bem papás? A Carminho não está nada bem. Fez febre, várias bradicardias severas e bradipneia desde o início da manhã até agora. Já iniciou antibiótico porque suspeitamos de septicemia e enquanto aguardamos o resultado temos que actuar com o antibiótico para lutar contra o tempo.
Septicemia?! Naquele momento todo o meu optimismo e esperança foram por água abaixo. A septicemia é altamente fatal. É uma infeção em que os agentes infecciosos penetram na corrente sanguínea e são assim transportados a vários locais do corpo, uma infeção generalizada. Sabia que era gravíssimo. Como é que uma bebé de 400 e poucos gramas ia conseguir vencer uma septicemia?
Já ouvi relatos de pais que dizem que lhes foi pedido para não chorar junto às incubadoras porque os bebés sentem tudo. A nós nunca nos foi dito isso. Acho que os enfermeiros da neonatologia já estão habituados a verem os pais chorarem junto das incubadoras. Eu própria já tinha chorado muito. Mesmo assim sentia-me a sufocar ali e saí para o corredor. Chorei tudo o que tinha para chorar durante um longo tempo. Tive os olhares, sorrisos e abraços de solidariedade de outros pais e quando já não tinha mais nada para chorar entrei e colei-me à incubadora da Carminho. Cantei-lhe vezes sem conta a música da Carolina Deslandes “A vida toda”. As minhas filhas ouviram essa música centenas de vezes por dia enquanto estiveram na neonatologia, é a música delas. Ainda hoje choro quando a ouço e elas acalmam quando a ouvem. Naquele dia a letra foi alterada por mim para aquilo que eu lhe queria dizer e pedir naquele momento. Não sabia se ela percebia mas queria que soubesse que precisávamos que ela vencesse a maldita septicemia. Que era muito amada e querida para nós. Tinha que vencer. Não conseguíamos imaginar o que seria de nós se assim não fosse.
Elas estiveram muitas vezes na corda bamba durante a gravidez mas há uma diferença enorme entre haver esse risco enquanto estão na barriga e vê-las a sofrer cá fora. Assim como perdê-las enquanto estão na barriga e perdê-las quando já há um rosto, um cheiro, toque. É um vínculo muito mais intenso. Não desvalorizando nunca uma perda de um filho enquanto está na barriga. Passei por semanas de verdadeiro horror com esse medo e sei bem o quanto custa só pelo medo.
Enquanto estivemos lá não me lembro de ver a Carminho a mexer-se minimamente. Saímos do hospital ao início da noite e a enfermeira disse para ligarmos sempre que quiséssemos para saber como ela estava mas que era realmente grave. Sinceramente deixei o hospital com a sensação de que não a voltaria a ver com vida. Ela estava mesmo debilitada. Estava aterrorizada.
Mais uma vez fizemos a viagem até casa sem falar. Tinha um nó gigante na garganta (quase como o que tenho agora ao relembrar aquele dia). Cada vez que um dos nossos telemóveis tocava era o pânico. Podia ser a notícia que não queríamos ouvir. Liguei de duas em duas horas para o hospital. Continuava com o mesmo estado. Bradicardias, prostração, bradipneia.
No dia seguinte manteve o mesmo estado e quando veio o resultado das análises confirmou-se que era septicemia e que estava bem medicada. O nosso medo mantinha-se. Dois dias depois começou a melhorar significativamente. A nossa guerreira estava a ultrapassar mais esta batalha. A força dela era uma coisa impressionante. Nem meio quilo de gente e uma vontade de viver desmedida.
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